Darwin: o super-herói

 

 

Charles Darwin em 1940, pintado por George Richmond. Dois anos depois ele completaria o primeiro rascunho da Origem das espécies , já contendo sua idéia sobre a seleção natural. Entretanto, o livro só foi publicado em 1859.

Bem-vindos a 2007! Neste ano, no dia 19 de abril para sermos exatos, terão ocorrido 125 anos desde a morte de Charles Darwin (1809-1882). A efeméride de 125 anos não é grande coisa – nem meritória de grandes simpósios, nem de elaboradas comemorações –, mas é um número redondo que representa 1/8 de milênio. Sua maior vantagem é que me dá uma desculpa para falar de Darwin nesta primeira coluna do ano.

Na opinião do grande biólogo molecular americano James Watson, Charles Darwin foi a pessoa mais importante que já viveu na Terra! E vejam o que disse o filósofo americano Daniel Dennett (autor de A perigosa idéia de Darwin ): “Se eu tivesse de dar um prêmio para a melhor idéia que alguém já teve, eu o daria a Charles Darwin pela idéia da seleção natural. Eu o colocaria na frente de Newton e na frente de Einstein…”.

Certamente essas hiperbólicas afirmativas deixam claro que o personagem Charles Darwin efetivamente passou do plano humano para o mítico, tornando-se assim um verdadeiro super-herói da modernidade.

Em seu brilhante trabalho de mitologia comparativa, Joseph Campbell (1904-1987) verificou que os heróis de todas as culturas e religiões humanas compartilham um arco de vida similar, que ele chamou de “monomito”. No livro O herói de mil faces , ele descreve que, no processo de se transformar de humano em herói, o personagem universalmente passa por três estágios previsíveis: separação – iniciação – retorno. Isto é especialmente bem exemplificado na trajetória do herói Luke Skywalker em Guerra nas estrelas , pela simples razão de que a sua estória foi escrita por George Lucas estritamente seguindo as teorias de Campbell .

O herói Luke Skywalker, de Guerra nas estrelas , lançado em 1977. Sua trajetória mítica foi cuidadosamente planejada por George Lucas com base nas teorias de Joseph Campbell. Separação: Luke abandona os tios, com quem morava em uma fazenda, e parte em aventura com Han Solo, Léia e Obi-Wan Kenobi. Iniciação: principiada com Obi-Wan Kenobi, é completada com o Mestre Yoda na solidão do planeta Dagobah. Retorno: Luke usa o “lado bom da Força” para destruir a “Estrela da morte” e torna-se o herói maior da aliança rebelde.

O arco de vida de Darwin acidentalmente seguiu de maneira fiel o script monomítico de Campbell. Separação: o jovem destinado a se tornar pároco na Inglaterra vitoriana e ter uma vida monótona abandona seu país para uma aventura de volta ao mundo no navio Beagle. Iniciação: na viagem de cinco anos (dos quais ele passou 2/3 do tempo em terra), Darwin vence várias agruras como constante enjôo no mar, perde a fé religiosa, descobre sua vocação de naturalista e coleta uma fantástica coleção de espécimes biológicos. Retorno: Darwin completa sua aventura no isolamento de sua mansão campestre e emerge como autor da Origem das espécies, um livro contendo idéias que deram novo sentido à biologia e modificaram radicalmente a visão que a humanidade tem de si própria e de seu lugar no universo. Certamente uma trajetória mitológica perfeita – não é de se surpreender que Darwin tenha se tornado um super-herói.

 

Darwin e a seleção natural

 

Como já mencionei em uma coluna anterior , não foi Darwin quem originou o conceito de evolução, mas certamente foi ele quem elucidou o principal mecanismo através do qual a evolução das espécies ocorre, a seleção natural. Vamos ver como ele apresenta o conceito no capítulo 4 da Origem das espécies (minha tradução):

 

“Visto que variações úteis ao homem certamente ocorreram, como pode então parecer improvável que outras variações de alguma forma úteis para cada organismo na grande e complexa batalha da vida deveriam surgir ao longo de muitas gerações? Se assim acontece, podemos duvidar (lembrando que muitos mais indivíduos nascem do que podem sobreviver) que indivíduos que tenham qualquer vantagem, por menor que ela seja, teriam uma maior chance de sobreviver e procriar? Por outro lado, podemos ter certeza que qualquer variação injuriosa de qualquer grau seria rigidamente eliminada. A essa preservação de diferenças e variações, e eliminação daquelas que são injuriosas, chamei Seleção Natural…”

 

Não posso resistir à tentação de também citar o parágrafo seguinte, que aborda pela primeira vez o conceito de deriva genética, que dá título a esta coluna: “Variações que não são úteis ou injuriosas não seriam afetadas pela seleção natural e permaneceriam como um elemento flutuante, como vemos em algumas espécies polimórficas, ou se tornariam ultimamente fixadas, devido à natureza do organismo e à natureza das condições.” Certamente Darwin pensou em tudo!

 

Pedindo emprestadas as palavras do filósofo grego Demócrito, podemos dizer que a teoria da evolução por seleção natural envolve o acaso e a necessidade. O acaso aparece na aleatoriedade do processo mutacional de geração de diversidade (em inglês, Generation Of Diversity, ou seja, GOD – legal, não é?). A necessidade, no processo de reprodução diferencial dos indivíduos mais bem adaptados ao ambiente.

 

A idéia revolucionária de Darwin foi que essas duas forças combinadas eram suficientes para explicar, de forma natural, a emergência e evolução das diversas formas de vida na Terra. Não havia necessidade de invocar a intervenção de nenhum ser divino ou sobrenatural – a natureza se bastava! Como colocou Dennett, o darwinismo foi um “ácido universal”, que corroeu todas as crenças tradicionais.

 

Muita gente pensa erroneamente que evolução por seleção natural é algo hipotético, na qual uma pessoa pode acreditar ou não. Pelo contrário, a evolução darwiniana hoje é uma verdade científica. Poucas teorias científicas conseguiram amealhar tanta evidência a seu favor. Em alguns casos, nós podemos observar a evolução darwiniana ocorrendo bem em frente dos nossos olhos! Vejamos um exemplo.

 

Evolução em tempo real

 

Representação estilizada do HIV (vírus da imunodeficiência humana), responsável pela Aids (síndrome da imunodeficiência adquirida). O vírus sofre rápida evolução darwiniana no paciente com Aids (arte: DOE).

Um dos maiores flagelos atuais da humanidade, a pandemia de Aids, paradoxalmente nos dá uma oportunidade única: ver a evolução por seleção natural ocorrendo em tempo real. Isso acontece porque o vírus HIV replica-se com enorme rapidez e também porque a enzima responsável, a transcriptase reversa, é predisposta a erros. Em conseqüência, o HIV está constantemente sofrendo mutações, gerando no paciente um enxame de variantes virais sujeitas às forças da seleção natural.

 

Quando um medicamento anti-HIV entra na corrente sangüínea, a seleção natural favorece as variantes resistentes do vírus, que então sobrevivem, se multiplicam e passam a predominar em pouco tempo. Este processo darwiniano é basicamente o mesmo que ocorreu nas centenas de milhões de anos da evolução da vida na Terra, só que agora é medido em dias e horas. Não há desenho nem direcionalidade, apenas as forças combinadas do acaso e da necessidade gerando cepas cada vez mais resistentes.

 

Uma estratégia para tentar driblar esse processo de seleção é o uso concomitante de vários fármacos anti-retrovirais com alvos diferentes, a chamada terapia tríplice. Assim, para sobreviver, o vírus precisaria ter múltiplas resistências simultaneamente, o que é muito improvável. Infelizmente a variabilidade genética é tamanha que tal multirresistência ocorre em alguns casos. Dessa maneira, para doentes com Aids, a evolução por seleção natural é uma inimiga! Entretanto, recentemente foi descoberto que ela pode ser manipulada a favor do paciente. Isso, como sói acontecer, foi descoberto acidentalmente.

 

Em 1997 a médica alemã Veronica Miller, da Universidade Goethe, em Frankfurt, estava tratando um paciente simultaneamente com vários medicamentos anti-HIV quando observou que não só havia resistência do vírus a todos eles, como também o paciente já estava apresentando sinais de toxicidade medicamentosa. Na falta de alternativas, ela decidiu suspender todos os medicamentos até que os sintomas tóxicos desaparecessem. Após três meses sem tratamento o paciente foi reexaminado e, para surpresa de todos, a resistência viral havia desaparecido! Em outras palavras, em 90 dias a população do HIV havia evoluído de um estado de resistência a todos os fármacos a um estado de suscetibilidade a todos eles. O que havia ocorrido?

 

Logo se constatou a razão. Na presença dos medicamentos, as cepas resistentes predominavam, mas algumas cópias do vírus infectante original não resistente (o chamado tipo selvagem) sobreviviam nos linfócitos. Quando os medicamentos foram suspensos, a vantagem seletiva das cepas resistentes desapareceu e o tipo selvagem, melhor adaptado a esse ambiente sem fármacos, começou a se replicar com enorme velocidade e logo substituiu as mutantes resistentes. A partir dessa constatação, nasceu o chamado “tratamento de interrupções estruturadas” da Aids, uma nova arma na guerra contra a doença, alicerçado ortodoxamente em princípios darwinianos!

 

Darwin e o conceito de vida
No primeiro capítulo de muitos textos de biologia, freqüentemente há tentativas de definir “o que é a vida”. Na maior parte das vezes esse é um exercício meramente pro forma, bizantino e intelectualmente estéril. Entretanto, no caso especial da astrobiologia, o desafio é real e coberto de relevância. Afinal, precisamos ter parâmetros muito bem definidos do que é um ser vivo ou não, se queremos ser capazes de reconhecer sinais de vida em outras partes do universo. Por isso um painel da Nasa estabeleceu uma definição simples e ampla, segundo a qual: “a vida é um sistema químico auto-sustentável, capaz de evoluir de maneira darwiniana.”

 

Assim, encontramos a evolução darwiniana na própria essência do que é a vida. Um dos meus gurus, Stephen Jay Gould concorda com essa posição ao dizer: “a revolução darwiniana relaciona-se diretamente com o conceito de quem somos e de que somos feitos e o que significa ’estar vivo‘. […] Assim, de muitas maneiras, ela representa a mais singularmente profunda e a mais embasbacante de todas as descobertas jamais feitas pela ciência.”

 

Em 2009 será comemorado o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e sem dúvida teremos 365 dias de intensas celebrações. Esta será uma oportunidade de fazer uma reavaliação do homem, do mito e de seu impacto na ciência e na sociedade. Até lá, só nos resta comemorar a efeméride menor de 2007, prestando uma justa homenagem ao nosso super-herói científico.


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
12/01/2007