De grão em grão…

A doença de Parkinson foi descrita pela primeira vez em 1817, pelo médico inglês James Parkinson (1755-1824). Hoje, é a enfermidade neurodegenerativa com a segunda maior prevalência em indivíduos acima de 50 anos. Sem cura, acomete cerca de quatro milhões de pessoas em todo o mundo; no Brasil, há 250 mil pessoas com Parkinson.

Pacientes com a doença exibem lentidão de movimento (bradicinesia) associada a pelo menos um dos seguintes sintomas: rigidez, tremor de repouso ou instabilidade postural. Adicionalmente, desordem cognitiva, depressão e disfunção no sistema autônomo também podem se manifestar.

As principais características da doença são a morte de neurônios secretores de dopamina, residentes na substância negra do mesencéfalo e responsáveis por controlar a transmissão dos comandos vindos do córtex cerebral para os músculos do corpo, e o acúmulo anormal de aglomerados proteicos chamados corpúsculos de Lewy, no citoplasma dos neurônios sobreviventes.

A proteína predominante nesses corpúsculos chama-se α-sinucleína, que é codificada pelo gene SNCA, o primeiro associado à doença de Parkinson. Duplicações ou triplicações desse gene podem causar uma das formas familiares da doença. Além disso, variações no gene são consideradas o fator de risco genético mais significativo também para a forma esporádica da doença.

O acúmulo de α-sinucleína desempenha papel central na patogênese do Parkinson, mas como leva à morte de neurônios dopaminérgicos ainda é um mistério

O acúmulo da proteína α-sinucleína desempenha papel central na patogênese do Parkinson, entretanto, como esse acúmulo leva à morte de neurônios dopaminérgicos ainda é um mistério. A impossibilidade do estudo e da manipulação de neurônios vivos oriundos de pacientes doentes, aliada ao fato de a maioria dessas células já ter sido perdida quando a doença se manifesta clinicamente, dificulta ainda mais essa análise. 

Modelos animais e linhagens celulares contribuem para o melhor entendimento da participação de α-sinucleína no desenvolvimento da doença de Parkinson. No entanto, esses modelos não replicam completamente as características moleculares e celulares da doença em seres humanos. Principalmente porque muitos deles se valem da superexpressão (mal controlada) dos genes de interesse (incluindo o SNCA), enquanto que na doença propriamente dita, uma alteração sutil de dosagem de determinados genes é o que mais importa.
 

Mais um passo

Células-tronco de pluripotência induzida (iPS) são capazes de se autorrenovar indefinidamente e se diferenciar em subtipos celulares especializados. Ao recapitular o processo de diferenciação das células do nosso corpo, oferecem a possibilidade de estudo do início e de fases precoces de várias patologias.

Como já discutido nesta coluna em outras oportunidades, a equipe do pesquisador japonês Shynia Yamanaka foi a primeira a conseguir reprogramar fibroblastos humanos adultos em células com as mesmas características de células-tronco embrionárias.

Por serem geneticamente idênticas ao doador e capazes de gerar todos os tipos celulares de um indivíduo adulto, inclusive neurônios, têm como principal possibilidade de aplicação a modelagem de doenças no laboratório e a triagem de fármacos in vitro, um grande avanço na direção da medicina personalizada.

Tabela estudos Parkinson

Nos últimos três anos, pelos menos cinco equipes de pesquisa ao redor do mundo foram capazes de gerar células iPS de indivíduos com Parkinson. Entretanto, dado o tempo de latência e variabilidade de progressão da doença, aliado às modificações epigenéticas sabidamente ‘apagadas’ durante o processo de reprogramação, ou por terem sido geradas a partir de fibroblastos de pacientes com a forma esporádica da doença, não são capazes de recapitular plenamente a evolução do Parkinson no laboratório.

Em trabalho publicado esta semana na revista científica Nature Communications, células da pele de um indivíduo com triplicação de SNCA em seu genoma, cuja doença começou a se manifestar precocemente, foram reprogramadas. Dessa forma, reduziu-se a influência de mudanças epigenéticas, aumentando-se as chances de obtenção de um modelo in vitro que, de fato, recapitule o início da doença de Parkinson no laboratório.

A equipe multidisciplinar, que contou com cientistas do Reino Unido, Estados Unidos, Japão e República Tcheca, reprogramou células da pele desse paciente com triplicação do gene SNCA e de um parente seu de primeiro grau não afetado, que serviu como ‘controle’ para discriminar as alterações fenotípicas daquelas associadas exclusivamente às variações do gene.

Ao contrário das células da pele do paciente, as células iPS, quando diferenciadas em neurônios dopaminérgicos, apresentaram um aumento de duas vezes na expressão de SNCA, fato não observado nas células reprogramadas do parente não acometido pela doença.

Neurônios reprogramados

Neurônios gerados a partir de células da pele de um paciente acometido pela forma severa e hereditária da doença de Parkinson. A reprogramação foi realizada por grupo de internacional e publicada na 'Nature Communications'. (foto: Universidade de Edimburgo)

Os autores, ao optarem por reprogramar células de um paciente com alteração genética, de início precoce e progressiva, têm agora a possibilidade de estudar em mais detalhes a gênese da doença de Parkinson. Além disso, a triplicação SNCA pode gerar um espectro clínico de outras doenças similares ao Parkinson, entre elas a paralisia supranuclear progressiva, atrofia de múltiplos sistemas e demência com corpos de Lewy.
 

Reprogramação vantajosa

A modelagem de doenças humanas, especialmente quando se trata de patologias do sistema nervoso central, possui muitos desafios. A técnica de reprogramação celular, apesar de algumas limitações, fornece um novo olhar sobre essas doenças, com vantagens em relação aos modelos existentes.

Em primeiro lugar, as células iPS permitem a produção e manipulação de tipos celulares especializados, como neurônios, garantindo uma análise personalizada sobre o efeito terapêutico e avaliação toxicológica de medicamentos em determinados indivíduos.

As células iPS permitem a produção de células especializadas, garantindo uma análise personalizada sobre o efeito terapêutico de medicamentos

Em segundo lugar, um banco contendo células iPS de diversos indivíduos acometidos por uma mesma doença poderá fornecer informações sobre a variação genética e potencialmente epigenética da população associadas àquela patologia.

Finalmente, variações individuais de resposta a um determinado fármaco poderão ser testadas de forma individualizada.

A técnica pode ser aplicada em qualquer enfermidade de fundo genético. Ao ser utilizada para o estudo do papel da α-sinucleína no desenvolvimento da doença de Parkinson, irá ajudar na compreensão da relação entre a degeneração de neurônios dopaminérgicos e a aglomeração dos corpúsculos de Lewy.

Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro