O teatro era maravilhoso, diferente de agora, quando as melhores salas de exibição ficam cronicamente ocupadas pelos triviais e longevos musicais de Andrew Lloyd Weber et al. Naquele ano assisti a várias peças com Alec Guinness, John Gielgud, Deborah Kerr, Ingrid Bergman, Joan Plowright e outros grandes ídolos do palco. O balé, a ópera e os concertos (havia várias opções todas as noites) eram fantásticos.
Esse período abriu meus horizontes e mudou minha vida. Recomendo a todos aqueles que seguem carreira acadêmica que façam de seu pós-doutorado em outra cidade ou país uma experiência de vida completa, com forte componente cultural, mais do que simplesmente um período de trabalho laboratorial e de amadurecimento científico.
Diálogos com filósofos
O episódio que me impressionou mais profundamente foi o primeiro, intitulado, “O que é a filosofia?” com Isaiah Berlin (1909-1997), da Universidade de Oxford. Esse pensador era considerado o mais importante intelectual inglês da época.
Isaiah Berlin nasceu em 6 de junho de 1909. Em outras palavras, ele faria 100 anos neste mês. Na sua edição de 31 de maio último, o caderno Mais! da Folha de S. Paulo fez uma bela homenagem a ele, com quatro páginas de artigos, entrevistas e citações. Devo confessar que havia décadas que eu não pensava em Berlin e essa publicação da Folha reavivou meu interesse por ele e sua obra.
Algumas citações de Berlin lembradas no Mais! são joias preciosas. Vejam a força e a sabedoria desta:
Especialmente em relação a como viver, o que ser e fazer – e de que aqueles que divergem deles não apenas estão equivocados, como são maus ou loucos e precisam ser freados ou suprimidos.
É uma arrogância terrível e perigosa acreditar que você, e você apenas, tem razão; que possui um olho mágico que enxerga a verdade e que outras pessoas não podem estar certas se discordam disso.”
O pluralismo de Isaiah Berlin
Nessa edição da Folha há um delicioso artigo do colunista João Pereira Coutinho (disponível aqui para assinantes do jornal), chamando a atenção para o livro Raposas e ouriços, do filósofo. Publicado em 1953, esse ensaio sobre a visão histórica do escritor russo Liev Tolstoi (1828-1910) tem uma introdução que se tornou uma brilhante elegia ao pluralismo. Abaixo, vai a minha tradução livre:
Segundo o poeta grego Arquíloco de Paros (século 7 a.C.), a raposa conhece muitos truques… (foto: F. Spangenberg).
“Há uma sentença entre os fragmentos dos poemas do grego Arquíloco [século 7 a.C.] que diz: ‘A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe apenas uma coisa importante’. Acadêmicos têm discutido qual é a interpretação correta dessas palavras sombrias, que podem significar nada além de que a raposa, em toda sua matreirice, é derrotada pela defesa única do ouriço.
Entretanto, tomadas figurativamente, as palavras podem ser estendidas com o sentido que caracteriza uma das mais profundas diferenças que dividem escritores e pensadores e talvez mesmo seres humanos em geral. Pois existe um grande abismo entre aqueles que, por um lado, relacionam tudo a uma única visão central […], um princípio organizador universal em termos do qual tudo que eles são e dizem encontra significado – e, do outro lado, aqueles que perseguem vários objetivos, frequentemente não relacionados e mesmo contraditórios […].
Estes últimos levam vidas, agem e contemplam ideias que são centrífugas ao invés de centrípetas; seu pensamento é diverso ou difuso, movendo-se em muitos níveis, aproveitando-se da essência de uma vasta variedade de experiências e objetos […]. O primeiro tipo de intelectual e personalidade artística pertence aos ouriços, o segundo às raposas…”
Uma interpretação pessoal
Em meu livro Humanidades sem raças?, publicado em novembro de 2008 pela Publifolha, e em algumas colunas anteriores ( O DNA do racismo , Epístola dezembrina ), propus um novo paradigma de estrutura da diversidade humana – o modelo genômico/individual. Esse paradigma, o único que creio ser biologicamente coerente, vê a espécie humana dividida não em raças ou populações, mas em seis bilhões de indivíduos, com graus diferentes de parentesco em suas várias linhagens genealógicas. De acordo com essa visão, que poderíamos chamar de “todos diferentes, todos parentes”, a noção de raças se esvanece como fumaça.
Também já mencionei anteriormente a notável obra Identity and Violence (“Identidade e violência”) do economista indiano Amartya Sen (Nobel de 1998), na qual ele chama atenção para o fato de todos nós sermos, simultaneamente, membros de diferentes coletividades, cada uma das quais nos conferem uma identidade particular. Segundo ele, é a imposição ao indivíduo, pela sociedade, de uma identidade única, açambarcante e definitória, que está na gênese dos conflitos raciais, religiosos e étnicos.
… enquanto o ouriço conhece uma única forma de defesa (foto: Alvaro Iriarte Sanromán).
Deixo claro que esse modelo genômico/ individual não quer sugerir que as pessoas devam ser individualistas e não tomar parte de coletividades. Pelo contrário, o pertencimento à família, a grupos sociais e a nações é de extrema importância para o ser humano.
Mas é exatamente a consciência de sua singularidade e de sua completa liberdade de se engajar em quantas coletividades desejar, sem qualquer obrigatoriedade externa imposta por vínculos de cor, de sexo, ou de nacionalidade, que permite a cada pessoa ter relacionamentos positivos e construtivos com outras que, como ela, são singulares em seus genomas e em suas histórias de vida.
Esses relacionamentos devem ser estritamente voluntários e dinâmicos e não podem assumir características estruturais, definitórias do indivíduo. Dessa maneira, a participação em coletividades nunca deve cercear a adoção de múltiplas identidades e nunca deve servir de motivação ou justificativa para divisão, conflito e ódio.
Ao ler Isaiah Berlin compreendi que, sem dúvida, a minha proposta é de um modelo de humanidade composta por raposas!
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
12/06/2009