Em um planeta muito, muito distante, e muito, muito habitado, a principal fonte de energia é tóxica, altera o clima do planeta com risco de torná-lo inabitável e tem prazo de algumas décadas para acabar. Seus habitantes, intoxicados pelos subprodutos desse combustível, não têm mais discernimento e organização para sair desse atoleiro e trocam tal combustível por outro, mais tóxico ainda.
Se este fosse um roteiro de filme de ficção científica, você dificilmente sairia de casa para assisti-lo. Mas nem precisa, já estamos vivendo essa história. O planeta em questão é o nosso, o primeiro combustível é o petróleo e o segundo é o carvão. Sim, segundo a Agência Internacional de Energia, até 2022 o carvão se tornará a principal fonte de energia no mundo. As fontes alternativas e os milagres tecnológicos que prometiam energia abundante, barata e limpa não chegaram a tempo ou não suprem à demanda.
A demanda só faz aumentar e, para atendê-la, vamos voltar no tempo (ou regredir na evolução?) e cair novamente nos braços (garras?) do combustível mais sujo de todos. Se hoje o carvão é um de vários combustíveis, durante muito tempo foi praticamente o único. Sem ele, não haveria a revolução industrial.
Mas a geração de 1 quilowatt (kW) a partir do carvão produz muito mais CO2 e fuligem do que o uso de qualquer outro combustível conhecido, e o mesmo vale para os efeitos climáticos e os impactos sobre a morbidade e mortalidade.
Vinte anos depois da Eco-92, a ressurgência do carvão é uma previsão sombria e muito, muito constrangedora, que confirma o fracasso ou a timidez – para ser diplomático – das muitas discussões, reuniões e negociações e das poucas medidas concretas para limitar as emissões de carbono e o aquecimento global. As emissões globais de gases de efeito estufa só fizeram crescer e já ultrapassaram o limite que manteria o aumento da temperatura média do planeta, em 2100, abaixo de 2 graus centígrados.
Mas os principais consumidores atuais e futuros de carvão, esse ouro negro e sólido, são a China, a Índia e os Estados Unidos, portanto isto não seria problema nosso, se a biosfera não fosse uma só. De fato, o consumo de carvão no Brasil é pequeno e, principalmente, de carvão vegetal, mas sua produção tem efeito ambiental devastador e é realizada em condições de trabalho comparáveis as da revolução industrial, isto é, altamente insalubres e próximas às da escravidão – diplomacia outra vez.
Benesse ou maldição?
Mas esses temas não frequentam muito o noticiário. Estamos mais preocupados com o ouro negro e líquido de nosso petróleo. Ele é tão finito quanto o petróleo dos outros, é mais sujo, mas ninguém parece preocupado com isso porque sua exploração gera royalties que irrigam generosamente os orçamentos de estados e municípios produtores e não produtores.
Mesmo um olhar distraído sobre as cidades beneficiadas por essa ducha orçamentária percebe as distorções geradas por aparente benesse. Nelas, o PIB per capita é quase europeu, mas portais de mármore e calçadões de porcelanato convivem com indicadores socioambientais de países africanos, ocupação caótica, especulação, corrupção e violência. Mas não se empolgue, pois isto era antes da descoberta do pré-sal; éramos felizes e não sabíamos.
A quantidade de petróleo estimada nas jazidas do pré-sal é tentadora e os novos royalties mais ainda, embora ambos sejam, por enquanto, apenas promessas. O desafio tecnológico de extrair petróleo perfurando quilômetros de sedimentos marinhos é imenso.
Não sabemos ao certo se vai dar certo e nem quanto vai custar, mas a partilha dessa herança maldita já semeou a discórdia e a desconfiança entre estados e poderes da nação, lembrando clássicos do cinema como O tesouro da Sierra Madre e outros menos clássicos como Os deuses estarão loucos? ou qualquer dos muitos filmes em que os bandidos se matam uns aos outros para ficar com fatias maiores de um botim.
Na ficção, tiros, facadas e traições a granel. No noticiário brasileiro atual, liminares, ações no Supremo Tribunal Federal, vetos presidenciais… tudo para promover ou impedir mudanças nas regras de partilha dos royalties do petróleo entre estados produtores e não produtores.
Além de ambição e olho gordo, revelando as piores facetas morais dos atores sociais envolvidos nessa rinha, a riqueza fácil dos royalties traz o desestímulo à diversificação da economia em geral e da matriz energética em particular, aumenta a desigualdade e a inveja e faz crescer pelo na mão. Cabe questionar: é benesse ou maldição? Perguntem aos nigerianos e venezuelanos.
A simples disposição de tentar uma extração tão complexa e arriscada é um sintoma dos tempos atuais. Os recursos que estavam mais à mão já foram extraídos. Isto vale para petróleo, carvão, outros minérios, lenha, água potável. Sobraram os pré-sais, o sujíssimo xisto, jazidas em áreas indígenas, parques e reservas. O lobby para a revisão dos limites dessas áreas está ativíssimo, no Brasil e no mundo.
Não sei se o mundo vai acabar no dia previsto para esta coluna sair, mas tudo isso me dá a desagradável sensação de que o fim já começou.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro