A seca no Sudeste do Brasil insiste em frequentar os cadernos de política e economia. Nos de política, o partido A acusa o partido B de inépcia na gestão da água de abastecimento público em São Paulo. Nos de economia, ficamos sabendo da intrincada engenharia financeira de concessionárias públicas e privadas de água e energia, das compensações, taxas, aumentos represados de tarifas, e dos efeitos da seca no custo da carne, do leite, dos grãos e de outros produtos agrícolas.
O interior paulista sofre com a maior seca dos últimos 70 anos. São Paulo, a maior metrópole do país, está perto ver esgotada a água de sua principal fonte de captação e cogita seriamente extrair água do lodo de suas represas. Pela primeira vez na história, a nascente do rio São Francisco secou. A foto que ilustrava a matéria mostrava um relevo acidentado e calcinado por queimadas.
Secas provocam queimadas, que provocam mais secas. Que o diga o estado do Rio de Janeiro, que perdeu nos últimos dias o equivalente a 5.200 campos de futebol de mata atlântica devido a queimadas. Em escala de superfície do território nacional, é pouco. Mas, em escala do que sobrou da mata atlântica, é um prejuízo e tanto.
Multiplicam-se fotos de carcaças de veículos diversos e lixo de toda sorte acumulado no fundo de rios e represas, que a seca expõe agora à luz do dia. Esses lugares eram tidos como bons sumidouros de provas materiais e de lixo em geral, cobertos com o manto da água e do esquecimento, supostamente para sempre.
Mas os tempos mudaram, as chuvas não vieram e os rios secaram. As hidrovias não são mais hidro e, portanto, não são mais vias. As represas secas se tornaram pastos, e onde havia peixes agora há vacas.
É uma ironia suprema algumas vacas paulistas beneficiando-se da seca, provocada por milhares de outras vacas a milhares de quilômetros dali, no arco de desmatamento que vai roendo a Amazônia na direção norte e noroeste e que tem a pecuária como um de seus principais motores e as queimadas como uma de suas principais ferramentas.
Naturalmente, esses generosos e pacíficos quadrúpedes herbívoros não têm livre arbítrio nem meios de promover o desmatamento; seus donos se encarregam disso.
Amazônia: de pulmão a torneira
Creio que, para o leitor regular desta coluna ou do noticiário no front ambiental, as informações sobre novos recordes de calor, chuva e seca no país não são grande novidade, nem a relação desses recordes com o aquecimento global – e seus muitos desdobramentos – e com as mudanças no uso do solo, no país e alhures. “Mudanças no uso do solo”: esse frio eufemismo contemporâneo politicamente correto deve ser traduzido como “detonar geral”, ok?
Os chatos do IPCC já cansaram de explicar que há um ‘rio’ de umidade da Amazônia para o Sudeste do Brasil, que alimenta as chuvas nesta região e é alimentado pela evapotranspiração da mata. Na verdade, jornalistas e divulgadores de ciência dos anos 1960-1970 estavam errados quando atribuíam a esse bioma a função de pulmão do mundo. Está mais para torneira que pulmão. É verdade que boa parte do Brasil anda mesmo de respiração curta, mas por ansiedade, devido à falta d’água.
Se houvesse alguma tênue conexão entre conhecimento e tomada de decisão, há tempos a população do Sudeste brasileiro já deveria ter metido o bedelho no uso do solo no Norte do país, movida como sempre por instinto de sobrevivência, mas obrando nesse caso hipotético para o bem de todos, embora sem querer.
Afinal, todo o território brasileiro depende da chuva que a Amazônia gera e que está minguando devido ao desmatamento. Sabemos que desmatamentos secam mananciais. Nos tempos do Brasil Imperial, plantou-se tanto café nas encostas do maciço da Tijuca que as fontes que abasteciam a capital escassearam, a floresta da Tijuca teve de ser replantada, e o café foi provocar seca em outras freguesias.
Falta nos convencermos de que o que observamos localmente ocorre também regional, nacional e globalmente. A consequência lógica é que seguir desmatando é uma atitude suicida. Sem água, não há energia nem comida. Sem esse trio, lá se vai a segurança. Chegando a esse ponto, já perdemos a educação. E quanto à saúde e ao transporte? Cada um por si.
Parece que só vamos entender os tais ‘serviços ambientais’ quando os perdermos. A atual crise hídrica é apresentada como anomalia ou fatalidade. Ninguém ousa apontar as conexões entre seca e atividade humana. Será por medo de irritar o agronegócio? Para piorar, estou convicto de que boa parte da população – inclusive tomadores de decisão – acha que os tais serviços ambientais incluem as atividades de guarda-parques, engenheiros florestais e paisagistas.
Seja como for, diante da escassez de água na torneira, as notícias catastróficas sobre a quebra de produção hidrelétrica perderam destaque. Podemos aguentar muito mais tempo sem luz e energia do que sem água, certo? Mas quanto tempo? Alguns afirmam que, se não chover pra valer nas próximas semanas nas áreas de captação de água de São Paulo, é catástrofe certa.
Em outros pontos do país, os eventos climáticos vão confirmando dolorosamente as previsões do IPCC para essa região do planeta. Alternância de grandes secas e cheias na Amazônia com tendência para períodos de seca mais longos, mais secas no Sudeste e mais temporais e enchentes no Sul.
Ainda bem que tanta divulgação dos problemas de abastecimento de água e hidreletricidade motiva os consumidores residenciais, industriais e rurais a usar esses preciosos recursos com mais parcimônia, não é? Que bom, porque, se dependêssemos de campanhas agressivas de racionamento por parte de empresas, do poder público e de agências reguladoras, estaríamos calados, como sempre, mas dessa vez devido à secura na garganta.
Novos tempos
Não sei para você, leitor, mas para mim secura na garganta era um dos efeitos que sofria ao ler o noticiário sobre a recente campanha eleitoral. A invisibilidade dos temas ambientais na corrida para o governo dos estados e do país foi quase total.
Não está acontecendo nada de especial. A maior cidade do país deve se tornar inviável dentro de um mês, mas tudo bem, vai chover antes disso. Também não tive notícia sobre mudança tarifária, estimulando a economia e punindo o desperdício de água e energia. Esse deve ser o tal cenário ‘business as usual’, do qual tanto se fala nas previsões sobre evolução do clima no futuro próximo.
Vai mesmo chover a cântaros em breve? É o que sugerem as séries históricas, aliás, bem curtinhas, de registro do clima. Mas os tempos mudaram, literalmente, e o passado já não vale muito para prever o futuro.
Bob Dylan talvez não pensasse estar sendo tão profético ao cantar nos anos 1960 que os tempos estavam mudando e que a resposta estava soprando no vento.
Veja Bob Dylan interpretando Blowin’ in the wind (Soprando ao vento)
Não sei qual é a resposta, mas sei que o vento está mais forte e mais seco. Então na verdade a resposta deve estar na chuva. Ou seria no isqueiro e na motosserra?
Aguardemos, ansiosos, pelas chuvas.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro