A grande aventura do desenvolvimento embrionário humano que se inicia com a união dos gametas e vai até o parto sempre nos fascinou. Por isso suscitam tanto interesse as raras ocasiões em que algo sai errado e ocorre um desvio do padrão normal e esperado da gestação.
Talvez o exemplo mais famoso desse ‘desvio de rota’ sejam os casos de gêmeos unidos ou siameses. Antes considerados parte de mitos e lendas, atualmente sabe-se que esses gêmeos são uma anomalia embrionária que resulta da incapacidade de dissociação completa de gêmeos monozigóticos (popularmente conhecidos como univitelinos ou idênticos), formados a partir de um único zigoto após a união de um óvulo e de um espermatozoide.
A ocorrência de gêmeos é estimada em um caso para cada 87 nascimentos. Contudo, essas taxas variam bastante em diferentes regiões do mundo, devido principalmente à incidência de gêmeos dizigóticos (conhecidos popularmente como gêmeos fraternos ou bivitelinos). O número de casos de gêmeos monozigóticos, por sua vez, é bastante constante: 3,5 em cada mil nascimentos ou uma proporção de 1:286 gestações. Gestações triplas (1 caso em 872 gestações) e quadrúplas (1:873 gestações) são bem mais raras.
A ocorrência de gêmeos unidos é de um caso para cada 50 mil gestações ou um em cada 40 gestações gemelares monozigóticas. Contudo, como a maioria (60%) dos gêmeos unidos morre ainda no útero ou ao nascer, a incidência desses casos é estimada em torno de 1 para cada 250 mil crianças nascidas vivas. Diferentemente dos casos de gêmeos dizigóticos, a ocorrência de gêmeos monozigóticos isolados ou unidos é casual e não está associada a fatores hereditários ou etários.
Fatores químicos e ambientais
O surgimento de gêmeos monozigóticos pode ser influenciado por fatores químicos e ambientais que causem anomalias ou malformações embrionárias. Em camundongos, que têm taxas de formação de gêmeos monozigóticos muito baixas, a exposição ao etanol e ao sulfato de vincristina (um alcaloide que inibe mitoses celulares e é utilizado no combate a leucemias agudas) no sétimo dia após a fertilização causa um aumento marcante na ocorrência de gêmeos monozigóticos.
Tais compostos químicos podem interferir com a separação dos cromossomos durante a divisão celular e em outras etapas das mitoses bastante frequentes durante as fases iniciais do desenvolvimento embrionário.
Não se sabe se existem agentes capazes de induzir a formação de gêmeos em humanos. Mas há alguns suspeitos, como os tranquilizantes procloroperazina ou procloropemazina, que podem afetar o desenvolvimento embrionário se forem consumidos durante o início da gravidez.
Em nossa espécie, a popularização das técnicas de reprodução assistida e a indução artifical da ovulação por meio de hormônios sexuais artificiais para tratamento de infertilidade podem aumentar para 1,2% as taxas de ocorrência de gestações monozigóticas, inclusive de gêmeos unidos. A transferência para o útero de embriões em fases mais adiantadas de desenvolvimento também parece contribuir para o surgimento de gêmeos monozigóticos.
O emprego de técnicas de reprodução assistida, que envolvem a implantação de embriões em úteros submetidos a doses elevadas de hormônios sexuais femininos para o isolamento dos óvulos, pode alterar a fisiologia desse órgão e contribuir para a ocorrência de anomalias embrionárias.
Há indícios de uma maior ocorrência de anomalias congênitas em casos de gravidez logo após o término do uso de anticoncepcionais orais. Existem suspeitas de que essas drogas podem, de alguma forma ainda desconhecida, alterar a fisiologia uterina, interferindo na implantação embrionária e permitindo o surgimento de gêmeos monozigóticos isolados e unidos.
O processo de divisão do disco embrionário que leva à formação de embriões monozigóticos ocorre entre o 13º e o 17º dias após a fecundação. A ocorrência de gêmeos unidos parece depender principalmente da exposição dos embriões durante essa fase do desenvolvimento embrionário a fatores que levam a malformações fetais. Contudo, esses gêmeos são formados mais comumente devido a uma reassociação de embriões previamente separados.
Por razões ainda desconhecidas da ciência, esses defeitos embrionários ocorrem mais em mulheres: há três casos femininos de gêmeos unidos para cada caso masculino. Talvez essa disparidade esteja associada com uma maior mortalidade de fetos masculinos acometidos por essa anomalia embrionária.
Gêmeos siameses
Há uma enorme variabilidade com relação à região pela qual esses gêmeos estão ligados, o que gera uma infinidade de denominações na literatura médica. Uma classificação comumente adotada subdivide os gêmeos unidos como craniópagos (ligados pelo crânio), toracópagos ou xifópagos (associados pelo tórax e abdômen), pigópagos (unidos pelo sacro) e isquiópagos (conectados pela pélvis).
Entre os gêmeos unidos, os xifópagos (dos termos gregos, xifós = espada, que se refere ao osso esterno, e pago = ligado) são os mais comuns: respondem por 38% a 73% dos casos. Por isso, frequentemente a denominação xifópago é empregada para descrever todos os tipos de gêmeos unidos.
A realização de uma ultrassonografia na 12ª semana de desenvolvimento embrionário é capaz de indicar a ocorrência de gêmeos unidos. Contudo, somente exames posteriores mais detalhados poderão caracterizar o grau de união dessas crianças e indicarão se será possível realizar sua separação cirúrgica.
A denominação popular “gêmeos siameses” foi cunhada devido aos irmãos Chang e Eng Bunker (1811-1874), nascidos no Sião (atual Tailândia) e convertidos em celebridades após se exibirem publicamente na Europa e nos Estados Unidos.
Chang e Eng nasceram unidos apenas por uma pequena peça de cartilagem em seus esternos e pela fusão parcial de seus fígados. Portanto, sua separação poderia ter sido realizada com pouco risco para ambos. Contudo, devido ao pequeno grau de desenvolvimento da medicina na época, tal procedimento foi desaconselhado.
Após algum tempo, os dois irmãos tornaram-se fazendeiros nos Estados Unidos, casaram-se com duas irmãs e tiveram 22 filhos. Chang e Eng provaram que, apesar dessa anomalia, gêmeos siameses podem viver normalmente e ser aceitos pela sociedade.
Atualmente, há alguns casos de gêmeos unidos que, devido à associação de seus órgãos internos, não podem ser separados cirurgicamente. Dois dos exemplos mais conhecidos são as norte-americanas Lori e George Schappell (1961-), unidas pelo crânio, e os também norte-americanos Ronnie e Donnie Galyon (1951-), que são unidos pelo esterno e compartilham uma série de órgãos vitais. Essas pessoas, apesar das enormes dificuldades que enfrentam, tentam viver com dignidade e normalidade e se tornaram um exemplo de perseverança e coragem para todos.
Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras
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