Muita gente talvez dissesse que são detalhes ou, simplesmente, maneiras de dizer. Mas, se as maneiras de dizer estão erradas, podem ser o ponto de partida de erros que não param de se suceder. Comento alguns exemplos.
Encontrei um material no Faceboook que deveria ser uma forma lúdica de ensinar as vogais a crianças (pode-se discutir com que idade é razoável aprender a distinguir vogais de semivogais e de consoantes e qual a relevância disso). O texto diz que as vogais são LETRAS, mas, em seguida, as vogais – cinco vogais? – são cantadas. O detalhe é que se ensinava que são LETRAS e depois, em vez de ESCREVER as letras (já que são letras), cantavam-se sons (representados por A, E, I, O, U). Minha pergunta é por que não se pode ensinar (já que se decidiu fazer isso) que as vogais são SONS (mais ou menos, na verdade, porque depois será necessário distinguir os fones (os sons) dos fonemas). Mas dizer que são sons seria uma aproximação mais adequada. Até porque não é muito complicado ensinar, na sequência, que estes sons podem ser representados por letras e até que diversos sons são representados pela mesma letra etc. Afinal, trata-se de ensinar a ler e escrever, não a falar.
Mais tarde, se ouvirá muitas vezes que as crianças trocam letras… FALANDO, que “eu” em alemão se lê [ói], que a sequência “ll” do espanhol se pronuncia assim ou assado. Tudo errado, tudo invertido. Mas aí talvez a coisa não tenha mais volta.
Outro caso, que ouço repetidas vezes: diante de pessoas que dizem “p(a)ra mim fazer”, e querendo corrigi-las (às vezes com excelentes intenções), alguém resolve ensinar mostrando, repetindo que “mim não faz / mim não diz”, como se a pessoa tivesse dito “mim faz” ou “mim faço”. Mas ela disse “PARA mim fazer”. Quem quer corrigir não deveria esquecer que o outro disse a preposição “para”, que é a razão pela qual a forma “mim” aparece.
Quando um desses maus analistas diz “mim não faz” quer dizer que quem faz é o sujeito, no caso, “eu”, e que, portanto, a construção deveria ser “para eu fazer”.
Mas esta análise é parcial, deixa de considerar aspectos importantes. Quem diz “para mim fazer” deslocou (mentalmente) o pronome “eu” para o escopo da preposição “para” (tirando-o da posição de sujeito de “fazer”). Pode-se representar assim a mudança de estrutura:
(… para (eu fazer)) -> (para eu (fazer))
Assim, “fazer” é agora uma oração reduzida de infinitivo, e “eu” passou para o escopo de “para”. Ora, “para” rege “mim”, como se vê em “Isso é para mim”.
Outra coisa que estes analistas incoerentes fazem é desconhecer que, se levassem a sério a regra “mim não faz”, teriam que dizer também “mandei ele fazer”, construção que abominam, já que preferem “mandei-o fazer”.
Pergunta-se: “o faz”? A resposta poderia ser que, se “mim não faz”, “o também não faz”. No entanto, aqui se critica “ele fazer” (quando “ele” é sujeito) e se defende “o”, sendo que “o” é a forma do objeto (nas palavras deles, “o não faz”).
A mesma alteração “mental” que coloca “eu” no escopo de “para” coloca “ele” no escopo de “mandar”, transformando-o em “o”:
(Mandei (ele sair)) -> (mandei ele (sair)).
Agora “sair” é uma oração reduzida de infinitivo. E “ele” passa a ser regido por “mandar”, o que o transforma em “o”.
Ninguém é obrigado a tirar isso da cartola, já que a escola não ensina análise sintática para valer, o que exigiria pelo menos coerência. Mas talvez os críticos da construção “para mim X” pudessem se dar conta de que o desprezo pela construção se deve apenas ao fato de que ela é popular (se bem que atualmente até isso deixou de ser verdade).
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas