Apesar da persistente crise da água, não vejo campanhas de racionalização de seu uso; apenas racionamento disfarçado. Carros de concessionárias de água andaram pelo meu bairro com mensagens sobre o tema, focadas no custo do consumo e em algumas medidas de economia, como conserto de vazamentos. Às vezes é bom lembrar o óbvio.
No meu prédio, fomos à caça do pinga-pinga nos apartamentos, testamos vazamentos e perdas no sistema de abastecimento, fizemos campanha com divulgação física e eletrônica. O consumo não baixou. Próxima etapa: checar o hidrômetro, fazer captação de água de chuva.
Em casa, troquei as descargas por descargas econômicas, com dois botões: um para 3 litros e outro para 6 litros. Mas não me lembro de ter acionado a descarga plena alguma vez.
Para quem não quiser ou não puder trocar a caixa de descarga, uma opção é colocar no reservatório um ou dois tijolos (do tipo compacto, nada de lajota de oito furos), o que reduzirá o volume de cada descarga em volume equivalente ao do(s) tijolo(s), sem reduzir sua eficiência.
Tenho me divertido bastante testando uma alternativa mais radical: dispensar o uso da descarga. Isso mesmo. E você também pode fazer isso, desde que não dispense o banho.
Para tanto, bastam uma bacia e um balde. Tome seu banho em pé, com os dois pés dentro da bacia. Um banho rápido – do tipo fecho-a-torneira-enquanto-ensaboo-e-não-enrolo-no-enxágue – requer de seis a oito litros. No verão, isso dá por baixo uns 15 litros por pessoa por dia, que podem ser usados para a descarga, na gulosa máquina de lavar, na lavagem do piso ou do carro.
Meu prédio é de tamanho médio: são só 30 apartamentos. Com uma média de duas pessoas por unidade, seriam 30 litros poupados ao dia, 900 por mês. Para o prédio todo, 27 m3 por mês, quase uma piscina olímpica por ano.
Quem diria que isso tudo caberia numa bacia, não? Faça as contas para o seu prédio, sua rua, seu bairro, sua cidade. Quanto não teria sido economizado nos últimos dez anos… Quanto não se economizará nos próximos 30 anos…
Sofisticando a coisa
Você poderia ainda separar a água acumulada até o momento de se ensaboar daquela resultante do enxágue. A primeira é bem mais apresentável que a segunda e serve para tudo o que citei acima e ainda para regar plantas (a não ser que alguém na casa use cremes corporais à base de plutônio, arsênio ou herbicidas).
Vale combinar que o xixi não vai para a bacia, mesmo que a água se destine à descarga. Afinal você não sabe exatamente quando isso vai acontecer e quer apenas poupar água e não fazer experimentos sobre fermentação da ureia, mesmo fortemente diluída.
Seria mais simples se a captação de água de chuva já estivesse funcionando, se a descarga já funcionasse com água de reuso (que viesse via encanamento e não via balde) e se cada apartamento tivesse um hidrômetro.
Mas o prédio é da década de 1950, e tudo isso exige obras, adaptações, tem custos que devem ser discutidos e aprovados em assembleia etc. Com água barata, a proposta dificilmente passará. Mas isso vai passar. O custo da água vai subir muito, e sua qualidade baixar, idem.
Água potável como penico
Corte rápido para os anos 90, talvez 1991 ou 1992. Na televisão brasileira, um famoso entrevistador interrompe o conjunto musical com um gesto e inicia com má vontade o massacre de seu entrevistado, um desafortunado engenheiro que defendia uma tese simples e racional: novas edificações, a partir de certa superfície construída, deveriam possuir sistemas de captação de água de chuva e de reutilização de água.
Em edificações já existentes, também a partir de certa área, se deveria fazer o possível para atingir os mesmos objetivos. Tudo isso era apresentado como estratégia para controle de inundações urbanas, sendo a economia de água um mero bônus. Haveria estímulo fiscal e outros mimos.
O bem-intencionado e bem documentado engenheiro não teve a menor chance. Chuva, inundação e privada foram ganchos para piadas previsíveis, e os códigos urbanos ficaram como estavam. Foi há mais de uma geração. E continuamos usando água potável como penico.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro