Diferentes olhares sobre a abolição

Este ano começou bem para quem gosta de cinema e história, com a indicação de dois filmes sobre escravidão nos Estados Unidos. Lincoln, de Steven Spielberg, que recebeu 12 indicações e levou duas estatuetas (melhor ator e melhor direção de arte), aborda os quatro últimos meses da vida do presidente norte-americano Abrahão Lincoln (1809-1865), especificamente as negociações para aprovar no Congresso a famosa 13ª emenda à Constituição dos Estados Unidos, que viria a abolir formalmente a escravidão nos Estados Unidos.

Django, de Quentin Tarantino, que recebeu dois dos cinco prêmios para os quais foi indicado (melhor roteiro original e melhor ator coadjuvante), retrata a vida do escravo Django que, ao ser libertado em 1858, passa a vida a tentar resgatar sua esposa, vendida para uma grande fazenda no Mississipi.

Não por acaso, os dois filmes abordam o mesmo período da história norte-americana, entre o fim da década de 1850 e 1865, quando findava a guerra civil que também pôs fim à escravidão no país. Tanto que, se aqui, para acompanhar o filme, um bom manual de instruções seria bem-vindo (sugiro o excelente livro Gerações de Cativeiro, de Ira Berlin), lá esses fatos são de conhecimento geral.

Da mesma maneira, também não é fortuito que, mais uma vez, Spielberg e Tarantino estejam à frente de filmes históricos. Ambos gostam de história. E os dois desejam retratar temas históricos sensíveis a seus públicos, cientes do efeito que suas versões dos acontecimentos criam.

Basta lembrar como os dois retrataram a Segunda Guerra Mundial (A lista de Schindler e O resgate do soldado Ryan, de Spielberg, e, mais recentemente, Bastardos Inglórios, de Tarantino). Isso sem falar no anterior Amistad, no qual Spielberg já havia tratado do período do fim da escravidão, ao filmar a revolta de africanos que iriam para Cuba a bordo do navio Amistad no fim dos anos 1840.

Filmes sobre Holocausto
Spielberg e Tarantino gostam de retratar temas históricos sensíveis a seus públicos, cientes do efeito que suas versões dos acontecimentos criam. Além da escravidão, os dois retrataram a Segunda Guerra Mundial, em especial o Holocausto, em ‘A Lista de Schindler’, do primeiro, e ‘Bastardos Inglórios’, do segundo. (fotos: reprodução)

Tanto Tarantino quanto Spielberg tratam seus protagonistas como heróis. O Lincoln do filme é o visionário que conseguiu entender a importância histórica do momento e não mediu esforços para conseguir aprovar a abolição da escravidão; o Django do filme é um escravo que, bem à moda Tarantino, faz justiça com as próprias mãos, matando todo mundo que vê pela frente para conseguir reaver sua esposa.

Realismo exacerbado x ficção deliberada

Mas as semelhanças param por aí. Spielberg quer construir sua versão da história fazendo-a parecer o mais próximo possível da realidade-tal-qual-ela-foi. Sua ambientação de época é impecável: o cenário, as roupas… Em tudo reconhecemos no filme aquilo que imaginamos ter sido os Estados Unidos de meados do século 19. Spielberg quer criar uma ilusão de verdade. Tanto que, ao final, nos perguntamos se o que aconteceu foi realmente assim, porque o filme nos faz crer que sim.

Os exageros de Tarantino não deixam margens de dúvida: é impossível que Django pudesse ter existido de verdade

Já Tarantino faz exatamente o oposto. Seus exageros não deixam margens de dúvida: é impossível que Django pudesse ter existido de verdade. Além da já deliberadamente estranha esposa – uma escrava chamada Brunhilde, que fala alemão –, é claro que nenhum liberto poderia agir como ele, matando brancos a torto e a direito sem ser atingido de volta. A força do argumento de Tarantino está na ação desmedida, inverossímil: ao contrário de Spielberg, que quer criar a ilusão no espectador de ter construído a história tal qual ela foi, Tarantino quer que o seu público tenha certeza de que ele faz uma versão da história como ela não foi.

E, no entanto, do ponto de vista da produção historiográfica contemporânea sobre escravidão, Tarantino formula questões muito mais acuradas do que as de Spielberg, e mesmo as imprecisões históricas parecem ter um sentido em seu filme. A cena da Ku Klux Khan, por exemplo, ridiculariza o racismo com humor – mesmo que, na vida real, o movimento só tenha surgido dez anos depois da época retratada no filme.

'Django', Tarantino
Para historiadora, as imprecisões históricas cometidas por Tarantino em ‘Django’ tem razão de ser. Na cena da Ku Klux Khan, por exemplo, o diretor ridiculariza o racismo com humor, mesmo que o movimento só tenha surgido de fato dez anos depois. (foto: reprodução)

Ainda no início do filme, o caçador de recompensas alemão Dr. King Schultz se surpreende ao saber que Django, um escravo, não só era casado, como estava atrás de sua esposa. E, de fato, este é um tema que por muito tempo vem sensibilizando os historiadores da escravidão. Como os escravos constituíam famílias? Como eram as  suas relações amorosas, suas vidas privadas? Django parece mais um super-herói do que uma pessoa de verdade, mas sua busca para reaver sua esposa foi mais do que real para um sem-número de pessoas que viveram situações semelhantes naquela época. Afinal, os escravos consideravam absolutamente injusto quando suas famílias eram separadas pela venda, e a revolta de Django certamente foi compartilhada pelos seus contemporâneos.

Do ponto de vista da produção historiográfica contemporânea sobre escravidão, Tarantino formula questões muito mais acuradas do que as de Spielberg

Por conta disso, tão importante quanto a representação da família escrava é a forma como Tarantino trata a resistência escrava. Lá pelo meio do filme, um proprietário branco de escravos se pergunta: “por que eles não nos matam?”. Realmente: por quê? Por que todos os escravos não mataram seus senhores? Essa pergunta, que está na raiz da reflexão sobre as motivações da ação humana, dá o que pensar.

Sendo maioria, é de se surpreender que, na vida real, os escravos não tenham se revoltado mais do que o fizeram. Talvez por isso Tarantino tenha criado um personagem tão violento e vingativo. Da mesma maneira, a historiografia sobre a escravidão vem se colocando essas questões. O que motivava a ação escrava? Qual é o valor atribuído pelos escravos às suas liberdades? Qual foi a influência de suas ações individuais no processo geral de abolição da escravidão?

Questionador x conservador

Quem assiste a Django não sai com respostas a nenhuma dessas perguntas, mas talvez fique com uma pulga atrás da orelha e pense quantas situações extremas e inusitadas o absurdo da escravidão criou para aqueles – principalmente os africanos e seus descendentes – que viveram em países como os Estados Unidos ou o Brasil no século 19.

O protagonista de Lincoln praticamente ignora todos os demais atores fundamentais para se entender o processo de abolição da escravidão nos Estados Unidos

O mesmo não acontece com Lincoln. É de se lamentar que Spielberg tenha escolhido a versão mais conservadora das interpretações sobre a abolição da escravidão nos Estados Unidos. O protagonista do seu filme praticamente ignora todos os demais atores fundamentais para se entender o processo de abolição da escravidão nos Estados Unidos: os republicanos do Norte, os abolicionistas, os descendentes de escravos livres e libertos e, principalmente, os próprios escravos, que contribuem fundamentalmente para o enfraquecimento do exército e da economia do Sul. O Lincoln de Spielberg aprova a 13ª emenda praticamente sozinho.

A abolição de Spielberg é feita por brancos ilustres, e os negros – escravos ou livres – são meros espectadores do processo decisório que levou ao fim da escravidão. É grave, para quem costuma ter a pretensão de apresentar a história tal qual ela foi.

'Lincoln'’, de Spielberg
Em ‘Lincoln’’, Spielberg apresenta a versão mais conservadora das interpretações sobre a abolição da escravidão nos Estados Unidos. No filme, o movimento é feito por brancos ilustres e os negros são meros espectadores. (foto: reprodução)

Seja como for, acabo esta coluna reconhecendo o quanto o tema da escravidão continua sensível na memória coletiva norte-americana, e é natural e saudável que seja assim. Escrevendo de um país onde a escravidão é tão ou mais importante para a construção da nação, fico me perguntando por que não temos mais filmes brasileiros sobre a abolição da escravidão. Tema para o mês que vem.

Keila Grinberg 
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro