Um dos equívocos periodicamente mencionados à socapa em programas de ensino televisivo de língua portuguesa diz respeito à mal descrita dupla negação, como em Não vi nada / Não vi ninguém. Há quem pense, mal contrabandeando sentenças algébricas, que a frase significa ‘vi tudo / todos / alguns’, já que (eles têm certeza!) a dupla negação equivale a uma afirmação.
Faço algumas observações iniciais, depois desenvolvo o argumento central: 1) o fenômeno da dupla negação, em português, é muito circunscrito; só ocorre quando há um pronome negativo no final da sentença (nada, ninguém, nenhum etc.); 2) só funciona em orações ativas; na respectiva passiva, ela desaparece (ver abaixo); 3) a regra vale apenas para o português culto, porque há variantes que aceitam outras construções (Ninguém não viu quando ele chegou); 4) há dupla negação também em inglês, em variedades não cultas, como I can´t eat nothing.
Vou especificar melhor uma das afirmações acima. Se admitirmos que a estrutura básica é representada por casos como Eu vi um asteroide, e que sua negação típica é Eu não vi um asteroide, marcada apenas com um elemento negativo, pode parecer estranho que orações como as seguintes não sejam gramaticais.
*Eu vi ninguém / *Eu vi nada / *Eu vi nenhum
já quem têm a mesma estrutura de Eu vi um asteroide.
Essas construções são agramaticais, isto é, faz parte do conhecimento dos falantes não produzir tais sequências e estranhar sua eventual produção. Mas os falantes que estranham as construções acima não estranham estas outras:
Eu não vi ninguém / Eu não vi nada / Eu não vi nenhum,
apesar de conterem duas palavras negativas. Se fosse legítimo transpor regras da álgebra para a gramática (mas não é), poder-se-ia dizer que a língua é inconsistente, porque as orações acima, que contêm dupla negação, deveriam significar (mas não significam)
Eu vi alguém / Eu vi tudo / Eu vi todos / alguns (humanos ou não).
Ocorre que simplesmente não é assim. Consideradas as coisas como são, e não como poderiam ser se as línguas e a matemática se correspondessem em todos os casos, nessas orações há uma negação simples no que se refere a seu sentido.
A peculiaridade das duas palavras negativas é apenas sintática. Mas elas não se anulam. Para que as construções sejam conformes às regras sintáticas da língua, é preciso que haja uma negação (não) antes do verbo, mesmo que haja um pronome negativo ao final. Eventual exceção é investimento estilístico, como se verá abaixo.
É fácil perceber que se trata de uma peculiaridade sintática. Transformando as orações em suas passivas correspondentes, a dupla negação desaparece. As passivas correspondentes aos exemplos acima não são
*Ninguém não foi visto por mim / *Nada não foi visto por mim / *Nenhum não foi visto por mim,
mas
Ninguém foi visto por mim / Nada foi visto por mim / Nenhum foi visto por mim.
A dupla negação só ocorre se os pronomes ‘negativos’ estiverem na posição de objeto. É como se, nessa posição, seu sentido negativo desaparecesse, é como se fossem simplesmente objetos do verbo.
Não se pode fazer uma suposta análise lógica desse fato, porque não se trata de lógica, mas de regularidade sintática e de sentido comum, compartilhado por todos os falantes. Regularidade (regras, portanto) é tudo o que se pede de uma gramática.
Um caso diferente
Um curioso, pouco treinado em sintaxe, tentado a fazer generalizações apressadas, poderia perguntar como se analisam construções como a seguinte:
(O ladrão entrou na casa de noite e) Ninguém não viu.
Esse é um caso visivelmente diferente dos mencionados acima. Agora, o pronome (ninguém, nada etc.) está no início da sentença, na posição de sujeito, e, além disso, ocorre um ‘não’ antes do verbo. Uma análise um pouco mais completa mostra que
a) é uma construção que não ocorre em todas as variedades do português, mas apenas em uma variedade empregada por falantes (numerosos, diga-se) menos escolarizados (é um fato sociológico);
b) o fato de haver duas negações não transforma a oração em afirmativa, já quem ninguém a entende assim (é um fato linguístico);
c) é incorreto dizer que a construção não segue regras. A regra que se depreende de fatos como esse é: usa-se sempre a partícula negativa antes do verbo, qualquer que seja o sujeito (no caso, mesmo que seja um pronome negativo).
O que diferencia essa variedade do português de outras é que, naquelas, a negação não ocorre se o sujeito for um pronome negativo (Ninguém viu / Nada caiu / Nenhum desabou). Mas nesta o fato ocorre – é um caso de variação sintática, socialmente motivado.
A coroa de Rubião
A propósito dessas estruturas, vale a pena ler uma análise de manobra estilística de Machado de Assis de autoria do linguista brasileiro Mattoso Câmara (1904-1970):
No problema estilístico particular, com que se defrontava Machado de Assis, impunha-se a necessidade de trazer para o primeiro plano o elemento lexical nada. Só assim se poderia visualizar, mercê de um recurso estilístico, o gesto de mãos vazias do demente Rubião [personagem do romance Quincas Borba, de Machado de Assis]: Em vez de um verbo negativo, passar-se-ia então a ter um verbo afirmativo, mas referindo-se a um objeto zero.
Para isso, o escritor fez abstração da função gramatical de nada, e, considerando-o exclusivamente o antônimo de tudo, usou-o numa frase que tinha de ser formalmente afirmativa. Conseguiu-o pela posposição de nada ao verbo, sem acompanhá-lo da anteposição de não, como é o uso normal da língua. Há assim uma deformação estilística deste uso com um objetivo expressivo bem definido:
“Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, – uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas.” (Joaquim Mattoso Câmara Jr., ‘A coroa de Rubião’. In: Ensaios machadianos. Rio: Ao Livro Técnico. 1971, p. 53-61).
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas