E o que diabo vem a ser a deriva genética?

Estreamos aqui uma nova coluna, chamada Deriva Genética . Ela será publicada mensalmente, na segunda sexta-feira de cada mês, e versará sobre temas variados de genética populacional e evolucionária humana.
 
De acordo com o Houaiss, deriva , substantivo feminino, é o desvio de rota de um navio ou de uma aeronave causado por ventos ou correntes, e a expressão à deriva quer dizer sem governo, ao sabor dos acontecimentos. D eriva tem tudo a ver com o Brasil, a começar com o seu descobrimento. Afinal, diz-se que a frota de Pedro Álvares Cabral chegou aqui trazida por correntes marinhas porque uma calmaria a havia deixado à deriva . Também no sentido de “sem governo”, à deriva lembra o nosso país .
 
De qualquer maneira, o nome da coluna, Deriva Genética , foi escolhido porque falaremos sempre de assuntos de interesse genético, mas de maneira casual, não sistemática, ao sabor dos acontecimentos e das novas descobertas. Esta será uma coluna pessoal – só discutirei tópicos que me fascinam. Planejo manter um indispensável rigor científico, procurando, entretanto, temperá-lo com anedotas históricas e filosóficas.
 
O termo deriva genética também tem um significado científico específico: é o nome dado à flutuação puramente randômica nas freqüências alélicas de uma população ao longo do tempo, devida a um efeito de amostragem. Para entender porque isto ocorre, devemos lembrar que o conjunto de genes de uma geração não é simplesmente uma cópia exata da geração precedente, mas sim uma amostra, que está sujeita a erros estatísticos, qual uma loteria genética.
 
O norte-americano Sewall Wright (1889-1988), um dos pais da genética de populações e da síntese evolucionária moderna, foi o primeiro a chamar a atenção para esse fenômeno. Ele verificou que, quando o tamanho efetivo da população é pequeno (como no caso das tribos indígenas e isolados genéticos) ou diminui muito por epidemias ou guerra (falamos, então, de um gargalo populacional), podem ser observadas variações importantes nas freqüências alélicas de uma geração para outra por causa da deriva genética.
 
Um caso extremo deste fenômeno, chamado “efeito fundador”, ocorre quando um pequeno grupo de pessoas migra para um local e reprodutivamente cria uma nova população. Se algum alelo por acaso ocorrer em alta freqüência na população “fundadora”, ele ficará super-representado na população “filha”.  Em uma coluna futura, voltaremos a este tema.
 
Coube ao grande geneticista japonês Motoo Kimura (1924-1994) demonstrar, no final da década de 1960, que a deriva genética ocorre mesmo em grandes populações, desde que os alelos sejam neutros (ou quase neutros) do ponto de vista da seleção natural. A seleção é uma força determinista que leva ao aumento da freqüência (e inevitável fixação) de alelos favoráveis e à extinção de alelos deletérios. Mas, quando os alelos são neutros, não há forças deterministas atuando e os alelos estão livres para flutuar em freqüência ao longo do tempo.
 
Imagine que você está à margem de um rio que flui (o tempo passando) e solta um veleiro de brinquedo (no caso, um modelo para um novo alelo gerado por mutação). Se há um vento a favor (seleção positiva), ele acabará chegando à outra margem (fixação); caso haja um vento contra (seleção negativa), ele vai acabar voltando à margem de partida (extinção). Mas, na ausência de vento, o barquinho ficará à deriva entre as duas margens, tendo baixa probabilidade de chegar a uma ou outra delas. Analogamente, a chance de um novo alelo chegar à fixação puramente ao acaso é muito pequena se a população for grande. Por outro lado, em uma população volumosa há um grande número de mutações ocorrendo o tempo todo. Desta maneira, a deriva genética de alelos neutros contribui significativamente para a evolução.
 
As teorias de Kimura causaram furor nos círculos genéticos das décadas de 1960 e 1970, pois, afinal, elas traziam à baila uma “evolução não-darwiniana”. Ocorreram debates acirrados de selecionismo versus neutralismo. Os geneticistas da velha escola não toleravam que o determinismo seletivo, tão conveniente e bem-comportado, pudesse ser substituído pela anárquica contingência neutralista.
 
No próximo mês, vou abordar em maior detalhe estes debates. Por enquanto, basta dizer que, hoje em dia, esta questão já foi em grande parte resolvida. A evolução no nível morfológico parece mesmo ser predominantemente baseada em seleção natural; já no plano molecular, ela ocorre principalmente pela deriva genética. Poderíamos dizer que, na escala dos organismos, ocorre a “sobrevivência do mais forte”, enquanto no mundo submicroscópico das moléculas impera a deriva genética e ocorre a “sobrevivência do mais sortudo”!
 

Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
10/02/2006