A vida na Terra surgiu há cerca de 5 bilhões de anos, em um local mais inóspito que Marte atualmente: uma poça d’água em um oceano primitivo cercado por muito pouco oxigênio e rico em gases tóxicos. Nos 2 bilhões de anos que se seguiram, nosso planeta foi habitado apenas por bactérias. Porém, um fato extraordinário ocorreu nesse período: algumas delas passaram a explorar o hidrogênio – um recurso abundante por aqui – e a combiná-lo com oxigênio para obter a energia de uma forma muito mais eficiente que a usada pelos outros seres da época. Estavam inventadas a fotossíntese e a respiração celular!
A bióloga Lynn Margulis, professora da Universidade de Massachusetts (EUA), é conhecida por sua teoria sobre o surgimento das células eucarióticas (foto: Wikipedia).
Posteriormente, cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, outro evento surpreendente ocorreu: surgiu um novo tipo celular muito mais complexo, maior e eficiente na utilização dos recursos ambientais. Eram as células eucarióticas, que diferem das procarióticas, mais primitivas, pela presença de um núcleo definido pela membrana. Como isso ocorreu é algo misterioso e de verificação praticamente impossível. Esse mistério se deve à natureza das células, diminutas e de preservação praticamente nula nos registros fósseis.
Atualmente, a hipótese mais aceita para explicar como surgiram as células eucarióticas é conhecida como teoria endossimbionte (de endo = interna + simbiose = relação ecológica em que ambos os parceiros ganham). Proposta no começo do século 20 pelo biólogo russo Konstantin Merezhkovsky (1855-1921), essa teoria foi “redescoberta” em 1967 por uma professora da Universidade de Massachusetts (EUA) chamada Lynn Margulis em um artigo inicialmente rejeitado pelo Journal of Theoretical Biology , mas que hoje é considerado um dos clássicos da biologia moderna.
A teoria endossimbionte propõe que nossas células surgiram após eventos sucessivos de fagocitose entre procariotos. Contudo, algumas dessas bactérias primitivas, por uma razão desconhecida, acabaram não sendo digeridas por seus predadores e permaneceram em seu interior usufruindo da abundância de compostos semidigeridos presentes no citoplasma dessas células. Com o decorrer do tempo, os procariotos fagocitados passaram a oferecer a suas células capturadoras vantagens como uma maior eficiência de utilização da energia contida nos alimentos, através da fotossíntese ou da respiração celular. Isso fez com que essas células obtivessem vantagens sobre suas vizinhas, que dependiam de formas pouco eficientes para a obtenção de energia, como a fermentação.
Rickettsias
A teoria endossimbionte tem sido apoiada por descobertas sobre a natureza e evolução das mitocôndrias e cloroplastos, que apresentam várias características de seus antepassados, similares às atuais Rickettsias — grupo de bactérias parasitas intracelulares associadas a doenças como o tifo. Essas organelas possuem tamanho, morfologia, ribossomos (as pequenas fábricas onde são feitas as proteínas), além de uma série de enzimas e parte do material genético semelhante ao encontrado nas Rickettsias primitivas. Embora a endossimbiose envolvendo mitocôndrias e cloroplastos seja mais conhecida, alguns cientistas recorrem a essa teoria para explicar praticamente todas as aquisições das células eucarióticas, como o núcleo, os lisossomos, peroxissomos, flagelos e cílios.
As Rickettsias atuais (na foto, Rickettsia prowazekii , bacilo causador de uma forma de tifo) são similares aos antepassados de mitocôndrias e cloroplastos, que até hoje mantêm várias de suas características (foto: Wikipedia).
Acredita-se que parte dos genes das mitocôndrias e cloroplastos tenham sido transferidos para o núcleo celular, de onde controlam o funcionamento dessas organelas. Assim, a enorme complexidade do genoma dos eucariotos, em comparação com o dos procariotos, tem sido explicada por eventos sucessivos de fusão do material genético entre endossimbiontes diferentes, aliado a uma pressão evolutiva que tem “moldado” nosso genoma.
Algumas pesquisas recentes têm, porém, questionado alguns pontos da teoria endossimbionte. Em edição recente da revista Science , por exemplo, um grupo liderado por David Penny, da Universidade de Massey, na Nova Zelândia, ataca a proposta de que o genoma dos eucariotos tenha surgido após episódios de fusão entre procariotos. Segundo os autores, embora essa hipótese pareça atraente, ela não encontra respaldo em dados obtidos após análise das proteínas encontradas apenas nos eucariotos. Algumas dessas moléculas, alegam eles, não possuem similares ou ancestrais nos procariotos e, portanto, não poderiam ter evoluído a partir das células primitivas. Penny e colaboradores propõem que eucariotos e procariotos tenham derivado de um ancestral comum, provavelmente extinto.
Martin Embley e William Martin, respectivamente das Universidade de Newcastle upon Tyne (Inglaterra) e de Dusseldorf (Alemanha), também publicaram recentemente, na revista Nature , um artigo sobre a origem dos eucariotos. Esses pesquisadores defendem que a ocorrência de outros eventos, além daqueles envolvendo mitocôndrias e cloroplastos, é questionável devido à escassez de evidências.
Até agora, praticamente todas as pistas sobre a origem dos eucariotos se baseiam em comparações de seu genoma com o dos procariotos. Novas evidências poderão surgir à medida que pesquisas sejam realizadas em locais candidatos a abrigarem formas primitivas de procariotos e de eucariotos (como, por exemplo, sedimentos abissais marinhos, pântanos e outros locais assustadores). Quem sabe esses estudos nos ajudem, no futuro, a elucidar esse elo perdido de nossa criação.
Jerry Carvalho Borges
Universidade do Texas em San Antonio
(pós-doutorando)
02/06/2006