Elementar, meu caro leitor

 

Sherlock Holmes e seu assistente, Dr. Watson, retratados por Signey Paget (1860-1908) em ilustração para o conto “O intérprete grego”.

Alguns dos enigmas da natureza são como histórias de mistério e suspense. Nesse gênero de literatura, os detetives encontram as pistas, elaboram teorias e tentam determinar, com o maior grau de certeza possível, a solução para um determinado enigma. O mais famoso detetive da literatura é personagem do britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930), Sherlock Holmes. Da mesma forma, os cientistas atuam como “detetives da natureza”. Ao tentar desvendar seus mistérios, eles também precisam descobrir as evidências e investigar todos os “suspeitos” para, então, resolver o caso. Mas os cientistas não resolvem os enigmas sozinhos: todos têm um colaborador, como o Dr. Watson, fiel companheiro de Holmes.

Existem muitos casos a serem desvendados para que se resolva completamente o enigma do universo. Em particular, um dos mistérios mais intrincados e complexos – e ainda sem solução – diz respeito à origem de tudo que existe. Como surgiu a matéria presente nos planetas, nas estrelas e galáxias e em nós mesmos?

Algumas pistas para a resolução desse enigma vêm sendo reveladas ao longo do tempo. As mais relevantes começaram a ser encontradas nas primeiras décadas do século 20. A descoberta de novos fenômenos levou à formulação das duas teorias fundamentais da física atual: a mecânica quântica, de autoria de muitos cientistas como Niels Bohr, Werner Heisenberg e Erwin Schroendiger, entre outros, e a teoria da relatividade geral, obra construída praticamente por Albert Einstein.

A primeira teoria explica a atuação de três das forças fundamentais da natureza: a eletromagnética, que controla as interações entre os átomos e moléculas, a nuclear forte, que atua no núcleo atômico, e a nuclear fraca, responsável pela radioatividade. Já a relatividade geral descreve a quarta interação fundamental da natureza, a força da gravidade, que nos mantém presos à superfície da Terra e domina o universo em larga escala. Contudo, até hoje não encontramos as pistas necessárias para conciliar essas duas teorias em um único modelo. A solução talvez traga a resposta para a questão mais intrigante de todos os tempos: a origem do universo.

A busca por pistas

O astrônomo norte-americano Edwin Hubble descobriu nos anos 1920 que o universo está em expansão.

Em particular, uma das pistas mais importantes para a solução desse “caso” foi a observação de que as galáxias, que são gigantescos aglomerados com bilhões de estrelas, estavam se afastando umas das outras em enormes velocidades, indicando que o universo está em expansão. Esse fato, descoberto pelo astrônomo americano Edwin Hubble (1889-1953) na década de 1920, estava previsto nas equações da relatividade geral.

 

No entanto, Einstein acreditava inicialmente na idéia de um universo estático. Para conciliar sua teoria com esse postulado, ele modificou suas equações, adicionando um termo extra para compensar a expansão do universo (conhecido como a constante cosmológica). Após tomar conhecimento dos resultados de Hubble, Einstein reconheceu que esse foi seu maior erro.

 

Essa descoberta estimulou os cientistas a formularem a hipótese de que, em um dado um instante, em um passado remoto, a matéria que hoje constitui as galáxias, estrelas, planetas etc., esteve muito mais concentrada. Esse estado inicial, de densidade e temperatura infinitas, é definido como uma singularidade. Quando essa singularidade “explodiu”, deu origem ao universo. Esse evento ficou conhecido como o Big-Bang (a grande explosão). Após esse instante, o universo começou a sua expansão e, como conseqüência, sua temperatura diminuiu, permitindo a formação da matéria. Como Einstein mostrou, a energia pode se transformar em matéria e vice-versa, em uma relação descrita pela mais famosa equação da física, E=mc 2. Entretanto, não podemos investigar in loco a origem do universo, uma vez que esse evento ocorreu há 13,7 bilhões de anos. Como faria Sherlock Holmes, devemos investigar detalhes minúsculos e elementares para tentar descobrir como aconteceu esse fenômeno. Os cientistas têm empenhado incansáveis esforços na construção de gigantescas máquinas – os aceleradores de partículas – para desvendar esse mistério.

 

Nessas máquinas, partículas como os prótons e antiprótons (que têm a mesma massa do próton, mas com carga elétrica negativa) são arremessadas umas contra as outras em velocidades próximas à da luz. Nesse caso, elas atingem uma densidade de energia comparável à que existiu nos primeiros instantes do universo: é como se essas colisões simulassem um pequeno Big-Bang. Nessas situações ocorre a criação de outras partículas elementares, observadas somente nessas condições extremas. Os resultados dessas experiências trazem novas pistas para a solução do mistério da origem da matéria.

 

A última peça do quebra-cabeça

 

Construção de um dos detectores de partículas do Grande Colisor de Hádrons, que será inaugurado nos próximos meses.

Dentro de alguns meses entrará em funcionamento o maior instrumento de investigação científica já construído: o Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês) que funcionará na Organização Européia para Investigação Nuclear (Cern), em Genebra, na Suíça. Os hádrons formam um grupo de partículas entre as quais as principais são os prótons e nêutrons.

 

O LHC poderá encontrar a última peça que falta para completar o quebra-cabeça do chamado modelo-padrão: o bóson de Higgs. Essa partícula foi prevista por esse modelo e representa a pista crucial para explicar a origem da massa das outras partículas elementares. O modelo-padrão é uma teoria quântica que descreve três das quatro interações fundamentais da natureza (fortes, fracas e eletromagnéticas) e como as partículas fundamentais produzem toda a matéria.

 

Entretanto, o mistério não estará completamente solucionado, pois ainda não temos pistas que permitam explicar a interação gravitacional por uma teoria quântica. Temos alguns suspeitos, mas ainda não foram observados experimentalmente. Entre eles, os principais são as chamadas supercordas, objetos unidimensionais que seriam semelhantes a uma corda. Suas propriedades permitiriam construir uma teoria quântica que unificasse a gravitação as outras interações da natureza. O LHC também poderá trazer evidências sobre esses objetos e testar algumas previsões da teoria de supercordas.

 

A solução final do mistério da origem da matéria talvez ainda não seja alcançada nessa nova investigação que ocorrerá no LHC. Existem muitos suspeitos, muitas hipóteses, mas ainda poucas provas. Quando o quadro final estiver completo, talvez as dúvidas sejam respondidas e nos mostrem que a solução estava bem próxima de nós e nos pequenos detalhes. Como diria Holmes ao fiel amigo: “É elementar, meu caro Watson”.

 

 

Adilson de Oliveira

Departamento de Física

Universidade Federal de São Carlos

20/04/2007