Eletrônica biodegradável

Nos filmes de espionagem como os de James Bond, ficamos impressionados com aquela história da gravação que se autodestrói logo depois da sua reprodução. Pois essa cena pode se tornar realidade em breve, graças ao trabalho realizado por pesquisadores dos Estados Unidos, Coreia e China. Eles desenvolveram um novo tipo de circuito eletrônico capaz de se dissolver em meios líquidos.

A pesquisa, publicada na revista Science de 28 de setembro, representa uma extraordinária mudança paradigmática – para usar um termo gasto. Desde sempre, circuitos eletroeletrônicos foram concebidos e fabricados para, se possível, durarem eternamente. Mas nada é eterno – como já dizia Vinícius de Moraes sobre o amor: “Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure”.

Os produtos eletrônicos viram lixo, em muitos casos, ambientalmente preocupante. Parafraseando Vinícius, a eletrônica biodegradável – chamada de transiente, devido ao seu caráter temporário – deverá ser perfeita enquanto durar.

A julgar pelo potencial tecnológico do feito, não deve causar surpresa o impacto que sua publicação teve nos veículos de divulgação científica e nos meios de comunicação de massa. Grandes veículos da imprensa repercutiram a notícia na internet, sem aprofundar os aspectos científicos da grande invenção, coisa que tentaremos fazer aqui.

Todos esses componentes se dissolvem em água ou em fluidos corporais porque têm dimensão nanométrica

Inúmeros trabalhos anteriores, desenvolvidos por incontáveis pesquisadores na área da nanotecnologia, desembocaram nessa invenção de John Rogers, Fiorenzo Omenetto e seus mais de vinte colaboradores. Como ocorre frequentemente na atividade científica, a bem preparada equipe estava no lugar certo e no momento oportuno para fabricar um circuito eletrônico biodegradável, composto de resistores, indutores, capacitores, transistores e diodos, ou seja, um chip biodegradável.

Todos esses componentes se dissolvem em água ou em fluidos corporais porque têm dimensão nanométrica (o nanômetro é a bilionésima parte do metro). Quem controla a dissolução do conjunto é seu envoltório, feito de seda, que, nesse caso, foi especialmente extraída do bicho-da-seda, por meio de um processo desenvolvido pelos autores do trabalho.

Cápsulas dissolúveis

Colocar circuitos eletrônicos em envoltórios é uma prática usual, conhecida como encapsulamento. Na eletrônica de nossos dias, a indústria se esforça para ter encapsulamentos com durabilidade máxima, pois a danificação do envoltório implicará a perda do dispositivo encapsulado.

Na eletrônica transiente, o objetivo é o contrário. O envoltório tem que se dissolver depois que a finalidade do dispositivo for atingida. A partir da dissolução do envoltório, os componentes ativos (transistores, diodos etc.) devem começar a se dissolver tão rapidamente quanto possível.

Veja no vídeo abaixo, produzido pelo Instituto Beckman, da Universidade de Illinois, um circuito biodegradável se dissolvendo em água

Dependendo da finalidade do dispositivo, o tempo para iniciar a dissolução do encapsulamento pode variar de alguns minutos a alguns anos. Os pesquisadores desenvolveram processos de tratamento dos envoltórios de modo a controlar esse tempo de dissolução, um resultado fantástico e fundamental para a utilização prática dessa tecnologia.

Para garantir a característica semicondutora dos elementos ativos do chip (transistores, diodos, transdutores, detectores) e permitir seu funcionamento, usou-se silício, o material mais apropriado para essa função. Foram utilizadas nanomembranas de silício suficientemente espessas (aproximadamente 300 nanômetros) para o funcionamento dos dispositivos eletrônicos e suficientemente finas para permitir a rápida dissolução em uma simples gota d’água. Os transistores fabricados continham menos de um micrograma de silício, podendo se dissolver em 30 microlitros de fluido corporal.

Além dos elementos ativos, um circuito eletrônico contém vários elementos passivos, como resistores, capacitores e indutores. Estes foram fabricados com nanofios de magnésio e óxido de magnésio, que têm dissolução quase imediata quando entram em contato com um líquido.

Vocação para a medicina

Todos os materiais utilizados têm excelente biocompatibilidade, o que justifica as bem difundidas expectativas de aplicação médica do dispositivo. Silício e magnésio são elementos naturais presentes em nosso corpo sob diferentes formas. As quantidades utilizadas nesses circuitos biodegradáveis são muito menores do que aquelas usadas em procedimentos médicos corriqueiros, como cirurgias intravasculares, encapsulamento de medicamentos e suturas. A quantidade de magnésio é menor inclusive do que a presente em multivitaminas e até menor do que o nível fisiológico normal.

Dispositivo biodegradável implantado em rato
Dispositivo eletrônico biodegradável para monitoramento e tratamento de infecção bacteriana é implantado em um rato. (foto: Beckman Institute/ University of Illinois e Tufts University)

As aplicações na medicina são as mais desejadas, tanto devido às especificidades do dispositivo, quanto ao seu caráter biodegradável. Qual médico ou paciente não ficaria satisfeito, por exemplo, com a possibilidade de implantar um dispositivo com finalidade diagnóstica ou terapêutica em algum órgão do corpo sem a necessidade de uma segunda intervenção cirúrgica para retirá-lo depois de cumprida sua função?

Outro tipo de aplicação muito esperado são os sensores para uso em ambientes agressivos. Esses dispositivos poderiam ser usados, por exemplo, para medir as condições ambientais após um derramamento de produtos químicos.

Finalmente, entra na fila uma aplicação que pode parecer um tanto curiosa à primeira vista. Refiro-me ao uso dessa tecnologia para a fabricação de dispositivos ‘duráveis’, como os celulares. Pense bem, quanto tempo você fica com um aparelho desses? Dificilmente mais de dois anos. E onde você o coloca depois de aposentá-lo?

O lixo eletrônico vem preocupando todo mundo há muito tempo. Então, que tal um celular – ou qualquer outro equipamento eletrônico que é rapidamente substituído por um modelo mais novo – que se desmanche depois de alguns anos de uso? Tecnologia para isso já existe.

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana