Antes mesmo de abrir os olhos, você já reconhece o lugar: é a sua cama, no seu quarto, na sua casa. Mesmo se a cama for estranha, ou se você tiver adormecido nos pés dela, o mais provável é que você não se espante ao acordar: seu cérebro sabe onde você dormiu. E não estamos falando apenas de uma questão de hábito, de dormir sempre no mesmo lugar — embora mamíferos, como nós, tendam a voltar sempre ao mesmo canto da toca para dormir. Pelo contrário: o truque também funciona para quem vive pulando de cama em cama, viajando a trabalho ou movido a festas, badalações e outros prazeres. O cérebro, antes de dormir, ’toma nota’ do local em que vai adormecer, e revê o recado várias vezes ao longo da noite. Como? Ativando especificamente os neurônios do hipocampo que representam a localização da cama da vez.
A ’revisão’ da localização da cama acontece durante um recém-descoberto terceiro tipo de sono, que sucede quase todo período do já conhecido sono REM (com sonhos) ou se intromete no sono não-REM (sem sonhos). A descoberta, publicada em 2002 no Journal of Neuroscience , é dos pesquisadores Beata Jarosiewicz, Bruce McNaughton e William Skaggs, da Universidade do Arizona (EUA). Os dois últimos já estudam há algum tempo o comportamento do hipocampo durante o sono. Essa estrutura é responsável tanto pela formação de novas memórias quanto pela navegação espacial — ou seja, saber onde você se encontra e como chegar ao local desejado.
Em um estudo de 1998, Skaggs e McNaughton haviam determinado que, enquanto no sono não-REM a maioria dos neurônios no hipocampo do rato é ativada, ainda que de forma desorganizada, durante o sono REM permanece em ação somente um grupo seleto de neurônios — aqueles que representam os locais explorados no dia. É como se o cérebro ao sonhar revisse uma fita com os acontecimentos do dia — um Vale a pena ver de novo neuronal.
Às duas fases principais do sono conhecidas junta-se agora uma terceira, durante a qual a grande maioria dos neurônios do hipocampo ficam silenciosos, e apenas uns três de cada cem permanecem ativos. O que esses poucos neurônios têm de especial? A resposta veio com o trabalho de doutorado de Beata Jarosiewicz, que registrou a atividade de algumas dezenas de neurônios no hipocampo de ratinhos que exploravam seu ambiente no laboratório e depois adormeciam à vontade onde quisessem. Os neurônios ativados durante a nova fase do sono representam o local exato no ninho em que o ratinho adormeceu.
Como é possível dizer isso? Fácil: existem neurônios no hipocampo que entram em ação somente em certos locais do ambiente, e sinalizam a posição do animal como aquela flecha vermelha nos mapas que indica ’Você Está Aqui’. No caso da terceira fase do sono, os neurônios ativados são os mesmos que entraram em ação antes enquanto o ratinho, ao explorar o ambiente, por acaso passava pelo local onde mais tarde ele adormeceria.
Ao longo de uma noite de sono, a nova fase ocorre várias vezes, e em todas os mesmos poucos neurônios são ativados: sempre aqueles que representam o local onde o animal ainda dorme. E mais: se durante a noite o ratinho acordar e mudar de posição, os neurônios ativados nas próximas vezes serão aqueles que representam a localização da nova cama, e não mais a anterior, do começo da noite!
Além de ocorrer várias vezes durante a noite, tanto em sono não-REM quanto logo após os episódios de sono REM, a nova fase também acontece invariavelmente no momento em que o animal desperta naturalmente de um sonho. Como também nós costumamos acordar naturalmente de um episódio de sonhos, a recapitulação do lugar em que adormecemos é pelo jeito a última coisa que o cérebro faz antes de acordar. Donde a sensação, na maioria das vezes, de saber onde estamos antes mesmo de abrir os olhos.
Só faltou fazer um experimento: transferir os ratinhos no meio da noite, sem acordá-los, para outro lugar no ninho. Em teoria, não há como o hipocampo adormecido registrar a mudança de local, e portanto os mesmos neurônios devem continuar sinalizando a cama original durante a noite. Jarosiewicz já pôs mãos à obra: ela fez os animais adormecerem sobre uma grande plataforma giratória e já tem os primeiros resultados. Ainda são preliminares, com poucos animais, mas o veredicto já se anuncia: os mesmos neurônios se mantêm ativos a noite inteira, mesmo com a rotação lenta da plataforma, e se ’lembram’ do lugar onde o animal adormeceu originalmente. O ratinho acorda do outro lado do ’quarto’ e, segundo William Skaggs contou por e-mail ao Cérebro Nosso , parece bastante surpreso — como se estranhasse a nova cama e achasse que não era bem ali que ele deveria estar…
O que não é, de fato, nenhuma surpresa. Afinal, essa é a apenas a versão científica de um experimento feito todas as noites em vários lares, e cuja resposta pais e filhos já conhecem há gerações: a última coisa que as crianças esperam, ao adormecer na cama dos pais, é acordar de manhã em seu próprio quarto. Isto é, se a criança não acordar e seu hipocampo não flagrar a tentativa de mudança de cama. É reclamação na certa…
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia