O Brasil chama a atenção do mundo pelo seu expressivo crescimento econômico e em breve vai sediar a Rio+20, conferência internacional sobre desenvolvimento sustentável. Cada vez mais, o termo ‘desenvolvimento sustentável’ tem sido complementado pela expressão ‘com inclusão social’. Mas, nesse quesito, que nota o país anfitrião da Rio+20 poderia tirar?
Não muito boa, a julgar pela nossa história, em que a resolução de conflitos sociais sempre foi atribuição das forças policiais e, mais recentemente, da Força Nacional, como nos recentes conflitos trabalhistas nos canteiros das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, que resultaram em incêndio de alojamentos. O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, apressou-se em atribuir os distúrbios a atos de vandalismo de um pequeno grupo de pessoas infiltradas (O Globo, 18/04/2012, pág. 27). Aguardamos então a identificação desse poderoso grupo, Sr. ministro.
Em uma rápida análise sobre esse evento, podemos ressaltar que a hidreletricidade é uma energia sustentável. Ponto a favor. Já a inclusão social, nesse caso… deixa pra lá. Esse e outros episódios sugerem que, apesar de nítidos progressos na redução da desigualdade na última década, a mentalidade de nossos líderes e gestores pouco mudou.
Outro exemplo eloquente e, dessa vez, bem urbano foi fornecido na semana passada pela Prefeitura do Rio de Janeiro, cujo secretário de Transportes qualificou como vândalos (de novo…) os populares anônimos que destruíram painéis colocados ao longo de uma das avenidas mais frequentadas do centro carioca (O Globo, 18/04/2012, pág. 20). Os painéis visam impedir a passagem de pedestres por lugares que não sejam os julgados adequados pelos engenheiros responsáveis por sua instalação. Mas esses engenheiros são pouco pedestres e quase nada usuários de transporte coletivo.
Como exemplo de atitude diametralmente oposta, no Japão, as novas praças são entregues sem grama. Esta é colocada depois que a população usou a praça por algum tempo e deixou traçados os seus caminhos preferenciais, que são então calçados. O resto é gramado.
Os casos brasileiros citados ilustram o modelo narcisista, autoritário e arrogante de gestão no qual persistimos. Seu subtexto declara: sei tudo e o que faço é perfeito, portanto, qualquer discordância é desvio. Mas frequentemente diz também: isto é meu, não se meta. Autoritarismo e patrimonialismo são traços marcantes da sociedade brasileira que não ajudam a fazer urbanismo sustentável nem promover inclusão social.
Mas, sejamos justos, nas últimas décadas o Estado transformou-se bastante. Seus muitos, pesados e ineficientes braços foram sendo substituídos por ágeis empresas privadas contratadas. O processo ocorreu no resto do mundo também, mas no Brasil esse capitalismo de Estado é marcado pela nossa também histórica tendência a borrar as fronteiras entre o público e o privado.
O binômio Estado-empresa poderia se traduzir em maior eficiência no uso dos recursos, mas o que parece predominar é a eficiente apropriação, por algumas empresas e servidores públicos, de recursos bem reais, por meio da compra de bens e serviços virtuais, fato que é objeto de rotineiro e caudaloso noticiário. Depois do trafico de armas, pessoas ou drogas, este deve ser um dos negócios mais lucrativos que há.
O problema é que verbas, desviadas ou não, são sinônimos de trabalho, água, terra, alimento e muitos outros recursos humanos e ambientais. Portanto, desperdiçá-las significa exercer mais pressão sobre um planeta já desgastado, o que explica por que questões como a governança estão na agenda de conferências como a Rio+20.
Outro tema da atualidade nacional que revela nosso pouco caso com o meio ambiente é a proposta do novo Código Florestal, que acaba de ser votado novamente na Câmara dos Deputados e agora segue para sanção ou veto presidencial. O documento está na contramão da sustentabilidade e da redução das emissões de carbono, compromisso que assumimos voluntariamente na COP 15, em Copenhagen. No quesito governança, a proposta promove mais apropriação de recursos naturais coletivos por uma minoria e o generoso perdão do desmatamento já ocorrido.
Cenário contraditório
Ser o país anfitrião de uma conferência internacional sobre clima, meio ambiente e sustentabilidade coloca o Brasil no centro das atenções, mas, com ou sem Rio+20, o país se destaca por sintetizar ao mesmo tempo as possibilidades e os desafios do desenvolvimento sustentável.
Temos (ainda) excepcional biodiversidade, grandes extensões de florestas que (ainda) não conseguimos derrubar, recursos hídricos abundantes (mas de qualidade ameaçada), variedade crescente de fontes renováveis de energia (e também pesados subsídios a energias não renováveis e carbono-intensivas) e setores industriais pujantes e inovadores convivendo com extensos bolsões de feudalismo: um verdadeiro laboratório.
E qual o lugar da ciência nos processos decisórios desse laboratório? Nenhum, a julgar pela predominância dos apetites privados, aliados ou não às esferas de governo, como se viu no caso da aprovação do Código Florestal.
Na arena global, o cenário não é diferente. O planeta, literalmente, pertence às grandes corporações, que representam pouca gente, mas têm muito mais recursos para investimento do que os governos. As indústrias carbono-intensivas, como a do petróleo, estão entre as mais poderosas. Elas exploram um recurso não renovável, cuja extração e combustão geram elevada morbimortalidade e emissões de gases que, segundo a ciência do clima, provocam aquecimento global.
Apesar disso, os gastos anuais globais com subsídios à produção e venda de combustíveis fósseis são de U$ 650 bilhões, a maior parte para manter os preços baixos. Pode parecer contraditório, mas faz sentido, já que todas as engrenagens da economia atual dependem desses combustíveis em maior ou menor grau.
Logo, é natural que o tema das mudanças climáticas levante tanta controvérsia; as questões em jogo são enormes. O que não é natural é a também enorme concentração da riqueza e do poder em tão poucas mãos, petrolíferas ou não. Em um ecossistema natural, isso duraria pouco ou dificilmente ocorreria, graças aos mecanismos de regulação do mesmo.
Regulação comprometida
No ecossistema da economia, também há mecanismos reguladores. As agências… reguladoras, por exemplo. Se você viaja de ônibus, barca ou avião ou tem telefone fixo ou celular, conhece bem a eficiência das mesmas. A imprensa é outro mecanismo importante, mas é atividade de empresas de comunicação, que são geralmente bem menores do que as empresas que anunciam em suas mídias, o que coloca claros limites à independência das primeiras.
E há a ciência, o pequeno grilo falante, primo pobre nos orçamentos, supostamente neutra, objetiva, independente e universal. Em um mundo em que narcisismo e voracidade estão em alta e honestidade e responsabilidade em baixa, ela até poderia ser um mecanismo regulador. Mas, embora use verbas geralmente públicas, sua divulgação depende sempre de canais privados, como a grande mídia e as revistas especializadas.
Minhas pesquisas são bancadas por agências de fomento, brasileiras, estrangeiras ou multilaterais, todas públicas. Mas, para ler a maioria de minhas publicações, em papel ou em uma tela de computador, você terá que pagar algo às editoras privadas Springer ou Elsevier. É verdade que muitas agências de fomento, como o National Institute of Health, nos Estados Unidos, mantêm portais onde estão disponíveis pelo menos os resumos das publicações de trabalhos financiados com verbas públicas. Mas a Elsevier estaria pressionando o legislativo local para que isso acabasse.
Para uma empresa, essa postura é natural, é o eterno combate à concorrência, é a fria lógica empresarial. Mas… se a difusão da ciência está privatizada, esqueça a neutralidade e a independência. Mesmo que tenham condições materiais para isso, são raros os cientistas que arriscam ser silenciados por batalhões de advogados e abordam temas que os interesses corporativos mais robustos podem considerar inoportunos. Afinal, o que impede as ditas corporações de serem também acionistas da editora, hum?
E, fechando o ciclo, o trabalho que um cientista submete a uma editora só é encaminhado aos colegas de profissão para revisão anônima – e gratuita – depois de passar pelo crivo de editores que são assalariados e, portanto, dependentes da boa vontade de seus patrões para seguir pagando as contas em dia. A rotatividade deve ser alta na categoria.
Para sair desse círculo vicioso, vamos precisar de muita ciência independente e, no momento, mais do que as do clima, as mais urgentes são as sociais e políticas. Talvez elas expliquem como o Estado republicano chegou a esse nível de anemia, como os sistemas de representação atingiram esse nível de descrédito e como as corporações ganharam tanto poder.
Espremida entre representantes que legislam em causa própria, corporações que infiltram todas as estruturas que poderiam regulá-las e grupos mafiosos que sugam os frutos de seu trabalho, a sociedade civil global talvez tenha mais chances de se fazer ouvir transformando-se, ela própria, em empresa.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro