Que tal aproveitar o tempo em que você dorme para aprender mais alguma coisa? Um outro idioma, por exemplo? Métodos de aprendizado de línguas durante o sono, daqueles de dormir com fones de ouvido, andaram na moda nos anos 1980. E logo caíram em descrédito, porque o ruído em ouvidos adultos só faz perturbar o sono. Aprender novas palavras estrangeiras, que seria bom, nada.
Mas talvez bebezinhos adormecidos de fato aprendam alguma coisa com a conversa dos adultos ao redor. Um estudo finlandês publicado na revista Nature em fevereiro de 2002 sugere que o cérebro recém-nascido aprende a processar os sons da fala ouvidos pelos bebês mesmo durante o sono.
’Sons ouvidos durante o sono’ não é apenas modo de dizer. Ao contrário do que se afirmou durante muito tempo, os sinais dos sentidos continuam sendo levados ao cérebro adormecido, sim, e chegam a passar pelos primeiros níveis de processamento, mais elementares, que não requerem consciência ou atenção. No caso da audição, persiste um processamento bastante básico e automático: é simplesmente uma questão de neurônios diferentes responderem a fonemas específicos.
E responder a fonemas específicos da fala é algo que o cérebro aprende a fazer desde cedo. Alias, é ouvindo os sons da fala que o cérebro aprimora suas habilidades fonéticas mais elementares, como o mesmo grupo finlandês mostrou alguns anos atrás. Recém-nascidos conseguem distinguir entre todos os sons possíveis de todas as línguas. Faz sentido, já que o cérebro não tem como adivinhar qual será sua língua materna.
Daí em diante, a habilidade de distinguir sons da língua materna se aprimora, enquanto a capacidade de distinguir entre sons de línguas estrangeiras se perde rapidamente — a não ser que eles continuem a ser ouvidos, por exemplo, se os pais falam línguas diferentes em casa. Aos seis meses de idade, bebês estonianos, perfeitamente familiarizados com sua língua materna, já não conseguem mais distinguir entre sons bastante parecidos do finlandês, uma língua próxima. E assim japoneses adultos têm dificuldade em separar /r/ e /l/, franceses não diferenciam entre os nossos /ao/ e /ão/… e brasileiros se perdem entre os vários sons parecidos com /i/ do inglês.
No estudo de 2002, os pesquisadores finlandeses testaram as habilidades de 45 recém-nascidos adormecidos para distinguir entre os sons /y/ e /i/. Os testes foram feitos numa noite, na manhã seguinte, e depois de 15 deles terem passado de três a cinco horas de sono ouvindo vários /y/s e /i/s seguidos. A distinção feita pelo cérebro pode ser detectada no eletroencefalograma (EEG) se os pesquisadores se valerem de um truque simples: o teste do elemento estranho.
Funciona assim: se vários sons idênticos forem ouvidos em seguida, como o tic-tac do relógio, o cérebro se habitua ao padrão, e apenas uma onda muito pequena aparece no EEG em resposta a cada um deles. Se de repente um som destoar, como um tic subitamente mais grave, o cérebro reage com uma resposta muito aumentada. Essa detecção do elemento estranho é automática, independe de atenção (tanto que continua até no cérebro adormecido) — e também funciona se o elemento estranho for um /i/ no meio de vários /y/s.
Sem o ’treino’ noturno, as respostas no EEG dos bebês aos /i/s estranhos eram semelhantes nas duas sessões de registro. Já nos bebês ’treinados’ durante o sono, as respostas no EEG aos raros /i/s se tornaram bem maiores na segunda sessão de registro, após o treino, como se o cérebro tivesse melhorado sua capacidade de discernir entre /y/s e /i/s. E mais: a distinção facilitada entre os dois sons parece específica para aqueles sons ouvidos no ’treino’, já que outros 15 bebês ’treinados’ durante o sono com /a/s e /e/s não mostraram diferença a seguir em sua capacidade de distinguir automaticamente, durante o sono, entre /y/s e /i/s. Além disso, o efeito pode ser relativamente duradouro, já que ainda era visível numa terceira sessão de registro, na noite seguinte.
Se bebês melhoram a distinção fonética até dormindo, por que então adultos não aprendem línguas estrangeiras durante o sono? Existem ao menos duas boas razões. A primeira é que o cérebro adormecido não consegue fazer o processamento necessário com os sons da fala para agrupá-los em palavras, associar-lhes significado e guardar tudo na memória. Não consegue e nem poderia: caso contrário, como adormecer se o cérebro insistir em encontrar sentido em todos os sons? Aumentar o vocabulário dormindo, portanto, é um sonho impossível.
A segunda razão é que o cérebro adulto pode até ouvir e fazer o processamento fonético mais básico durante o sono — mas a essa altura da vida, esperar aprender com isso já é querer demais. A infância, época em que o cérebro estava mais apto a se ajustar aos sons da fala, materna ou estrangeira, já acabou. Quem aprendeu a ouvir sons de outras línguas durante a infância aprendeu; quem não aprendeu provavelmente terá dificuldade com esses sons pelo resto da vida.
Quer dizer então que recém-nascidos conseguem aprender durante o sono? Sim e não. As regiões auditivas aprendem a responder aos sons e pelo jeito o fazem até durante o sono, sim. Isso é uma grande vantagem para um cérebro que está no auge da sua capacidade de reorganização em função dos estímulos que recebe, sobretudo quando vozes familiares falando a língua materna estão sempre por perto. A evolução, afinal, não previa quartos separados e absolutamente silenciosos para bebês dormirem isolados da fala humana.
Só que isso não significa ’aprender’, no sentido usual da palavra. Tornar-se capaz de distinguir sons da fala é importante, mas está longe de ser a mesma coisa do que aprender o significado das palavras, as declinações do alemão ou a tabuada de 1 a 100. Para o que normalmente se chama aprendizado é preciso atenção, e para se prestar atenção é preciso estar bem acordado.
O que não quer dizer que aquelas oito horas de sono noturno são inúteis para os adultos. Muito pelo contrário; hoje se sabe que elas são essenciais para o aprendizado — mais exatamente, para que o cérebro de fato fixe o que aprendeu ao longo do dia. Você começa a aprender no curso de inglês, e enquanto dorme seu cérebro ignora a fita embaixo do travesseiro, talvez justamente para poder dar conta de revisar e passar a limpo as ’anotações’ que fez durante o dia. Pensando bem… está de bom tamanho, não?
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia