Engenharia neuromórfica

Embora a expressão que intitula esta coluna tenha aparecido pela primeira vez na literatura científica por volta de 1997, as ideias que lhe deram origem têm mais de um século de existência. Os estudos sistemáticos pertinentes à área tiveram início no princípio dos anos 1950, e a expressão mais específica – “sistemas eletrônicos neuromórficos” – foi cunhada nos anos 1980 pelo especialista em informática norte-americano Carver Andress Mead.

Trata-se de uma área que envolve física, informática, matemática e neurociência. Uma consequência algo perturbadora dessa interdisciplinaridade são as diferentes denominações para a mesma subárea de estudo ou a mesma denominação para diferentes áreas. Por exemplo, parte importante do que se faz na engenharia neuromórfica pertence à neurociência computacional, que tem a ver com duas coisas diferentes: uso extensivo de modelos computacionais e simulações para investigar as funções cerebrais; investigação do cérebro a partir de suas capacidades computacionais.

A engenharia neuromórfica se presta tanto ao desenvolvimento de dispositivos que simulem o cérebro, quanto à criação de computadores inspirados no funcionamento desse órgão

Ou seja, a engenharia neuromórfica se presta tanto ao desenvolvimento de dispositivos que simulem o cérebro, quanto à criação de computadores inspirados no funcionamento desse órgão. Qualquer que seja a abordagem, ela se enquadra no que se denomina engenharia reversa.

Na impossibilidade de abordar aqui o tema na extensão e profundidade que merece e para não ficar no nível superficial de uma breve notícia, considerarei com algum detalhe a elaboração de um sistema eletrônico inspirado no funcionamento do nosso sistema visual. Foi, aliás, esse trabalho que inspirou o surgimento da engenharia neuromórfica, e sua heurística é muito similar às aplicações que se seguiram na investigação de outras funcionalidades cerebrais.

O cérebro humano tem cerca de 100 bilhões de neurônios, cada um conectado a outros 10 mil, comunicando-se por meio de sinapses com velocidade aproximada de 10 quatrilhões de operações complexas por segundo, ou seja, 10 petaflops. Para isso, o cérebro consome menos energia que a necessária para acender uma lâmpada caseira. Levando em conta velocidade e consumo de energia, pode-se dizer que o cérebro é um bilhão de vezes mais eficiente que o mais potente supercomputador já construído. Então, por que não criar um computador que use o mesmo mecanismo do cérebro? É justamente isso o que buscam cientistas e engenheiros envolvidos na engenharia neuromórfica.

Neurônio
Neurônio cortical (verde) e células neuronais (vermelhas). Pesquisadores envolvidos na engenharia neuromórfica querem criar computadores que usem o mesmo mecanismo do cérebro. (imagem: GerryShaw/ Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)

Qual é esse mecanismo? Precisamente, ninguém sabe. Mas o uso da engenharia reversa com tecnologia neuromórfica é um dos caminhos possíveis para descobri-lo. Nesse caminho, uma espécie de processo simbiótico dita os procedimentos. Alguns conceitos, mesmo que imprecisamente definidos, orientam a construção de dispositivos eletrônicos para simulação de alguma parte do cérebro. Resultados experimentais in vivo e in vitro realimentam esses dispositivos, propiciando aumento de eficiência e simulações mais realistas.

Vejamos como isso vem sendo feito no caso da retina dos vertebrados, que apresenta a mesma estrutura para todas as espécies, inclusive o homem, o que já é um resultado por demais impressionante.

Conectômica

Estudos anatômicos, fisiológicos e morfológicos conduziram a um cenário cujos fundamentos são os seguintes: os vertebrados têm, na parte mais externa da retina, dois tipos de fotorreceptores (cones e bastonetes) e, logo abaixo, cinco tipos de neurônios retinais (células bipolares, células horizontais, células amácrinas, células interplexiformes e células ganglionares). Como o nome sugere, os fotorreceptores são sensíveis à luz e têm a função de transformar a energia luminosa em sinais elétricos. Esses sinais são manipulados pelas células neuronais e transferidos para o interior do cérebro.

A primeira tentativa para simular esse processo, e que deu origem ao que hoje se conhece como engenharia neuromórfica, foi realizada no final dos anos 1980 por Carver Mead e colaboradores, no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), e tratava tão somente da parte inicial do processo, ou seja, a transformação da energia luminosa em sinal elétrico.

Nada melhor que um fototransistor para simular os fotorreceptores do sistema visual dos vertebrados

Quaisquer que sejam as reações bioquímicas realizadas no processo acima, o resultado final sempre pode ser colocado em termos de aplicação de tensão elétrica (voltagem) e corrente resultante. Mead e colaboradores observaram que a curva da corrente elétrica na saída de um nervo, em função da voltagem aplicada nas suas extremidades, tem a mesma forma da corrente na saída de um transistor. Quem puder observar as duas curvas ficará impressionado. Portanto, nada melhor que um fototransistor para simular os fotorreceptores do sistema visual dos vertebrados.

Depois que os sinais luminosos são transformados em pulsos elétricos pelos fotorreceptores, eles são integrados pelas células horizontais e modificados pelas bipolares, de modo que o cérebro possa interpretar os sinais em termos de cor, profundidade, contraste, entre outros parâmetros essenciais para a formação da imagem do objeto analisado.

No sistema neuromórfico, a corrente elétrica gerada pelo fototransistor é enviada para um complicado circuito construído com diodos, resistores e transistores, que simula as funcionalidades das células horizontais e bipolares. Embora tudo isso tenha sido feito em um dispositivo simples, construído em menos da metade de um centímetro quadrado e com apenas 48 por 48 pixels, os resultados obtidos foram tão impressionantes que os estudos de seus seguidores rapidamente desembocaram em projetos revolucionários e de alta tecnologia, hoje reunidos na grande área do conhecimento denominada conectômica, que une estudos da neuroinformática e modelos em larga escala do funcionamento do cérebro. 

Memristor

O processamento computacional do cérebro apresenta duas diferenças básicas em relação aos computadores desenvolvidos até agora. A primeira diferença é que no cérebro o processamento é paralelo; nos computadores, é sequencial. A outra diferença é que, ao contrário do computador, o cérebro não tem um local definido para armazenar dados. A memória no cérebro está distribuída entre os vários elementos do circuito neuronal.

Esse aspecto orientou o interesse da comunidade científica por um dispositivo inventado nos anos 1970 pelo engenheiro e cientista da computação filipino Leon Ong Chua, o memristor (acrônimo para memory resistor), tema desta coluna em janeiro de 2009. Quando escrevi o referido texto, a Web of Science registrava 34 citações ao trabalho de Chua. Hoje o artigo tem 774 citações, e várias propostas de circuitos neuromórficos estão disponíveis na literatura.

Chip com memristor
Chip com um memristor, 600 vezes mais fino que um fio de cabelo. O dispositivo, que é capaz de aprender, foi construído pela equipe de Andy Thomas na Universidade Bielefeld, Alemanha. (imagem: Andy Thomas/ Bielefeld University)

Mencionar todos os projetos que empregam o memristor e outros tantos que não o utilizam ocuparia mais espaço que o razoável para esta coluna. Por outro lado, não posso concluir sem citar os dois projetos mais debatidos atualmente na literatura científica e nos meios de comunicação: o Cérebro Azul, da IBM, e o Brain (Pesquisa do cérebro através de avançadas e inovadoras neurotecnologias, na sigla em inglês), sobre os quais escrevi em abril de 2013 em um contexto algo diferente deste que enfoco agora.

Também é necessário dizer que as aplicações do memristor não se limitam à neurociência. Assim como a engenharia neuromórfica, o dispositivo inventado por Leon Chua deverá ser usado em computadores da nova geração, comercializados para uso geral. Aliás, não foi pela porta da neurociência que o memristor foi recuperado do seu quase ostracismo. Foi na tentativa de R. Stanley Williams e sua equipe, na Hewlett Packard (HP), de construir um computador molecular que o memristor apareceu (veja a coluna mencionada acima). No final, espera-se que essas inovações resultem em máquinas com inteligência artificial, computadores humanoides que enxergam, ouvem, falam e, sonho ou pesadelo, tomam decisões. 

Carlos Alberto dos Santos

Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana