Epístola dezembrina

Belíssima iluminação da natividade na Folha 89v do Livro de Horas de Joana I de Castela (M. Moleiro Editor, Barcelona, Espanha).

Estamos em dezembro de novo! Lamento o uso de um chavão, mas este ano realmente passou chispando. Parece que foi ontem mesmo que escrevi “Sonata de Natal”, publicada em dezembro de 2007.

Dezembro é um mês cheio de referências religiosas, a maioria delas relacionadas com o solstício de inverno no hemisfério norte, que ocorre no dia 21. Nessa data, devido à inclinação da Terra no seu eixo de rotação, a quantidade de horas do dia está no seu mínimo acima do Equador e no seu máximo no hemisfério sul.

Na Roma antiga, um festival chamado Saturnália (vários dias de festas em honra de Saturno) ocorria de 17 a 23 de dezembro. O solstício de inverno era também considerado pelos romanos como a data de nascimento de vários deuses, semideuses e heróis relacionados ao sol, tais como Apolo, Attis, Baal, Dionísio, Hélios, Hércules, Horus, Mithras, Osíris e Perseu.

Sol Invictus e o Natal
No ano de 274, o imperador romano Aureliano (214-275) unificou todas as celebrações associadas ao solstício de inverno no culto oficial do Sol Invictus, que foi por algum tempo a principal divindade do Império Romano. A data de nascimento de Sol Invictus, comemorada pelo festival dies natalis Solis Invicti (“dia natal do Sol Invicto”), foi oficializada como sendo 25 de dezembro.

Quando, no século 4, o Cristianismo passou a ser a religião oficial do Império Romano, tornou-se imperativo decretar uma data para as comemorações da natividade de Jesus, já que seu verdadeiro dia de nascimento não era conhecido. Algumas autoridades acreditam que o dies natalis Solis Invicti, em 25 de dezembro, foi então convenientemente adotado pela Igreja para manter a tradição já estabelecida por Aureliano.

O Cardeal Joseph Ratzinger, atualmente Papa Benedito 16, rejeitou tal noção, argumentando que a data de 25 de dezembro foi calculada simplesmente por ser nove meses após o dia 25 de março (festa da Anunciação), que é oficialmente considerado o dia da concepção de Jesus. Há também evidências de que a comemoração da data de nascimento de Jesus em 25 de dezembro precedeu o estabelecimento do dies natalis Solis Invicti por Aureliano.

Uma das importantes comemorações religiosas de dezembro é o Chanucá, ou Festival das Luzes, uma tradição judaica. Nesse rito, velas são acesas em um candelabro especial, o Chanukiá, por oito dias sucessivos, em comemoração à reconquista de Jerusalém e do Templo Sagrado por Judas Macabeu em 164 a.C. A foto mostra o rabino Aaron Rabinowicz, Bialer Rebbe dos Estados Unidos.

De qualquer maneira, a vasta gama de celebrações do mês de dezembro é testemunho da grande heterogeneidade de crenças de nossa humanidade comum. Assim, mais do que qualquer outro, dezembro é o mês ideal para festejarmos ecumenicamente a nossa diversidade!

Humanidade sem raças?
No mês passado, saiu pela Publifolha um pequeno livro meu intitulado Humanidade sem raças?. Nesse livro, que foi recentemente resenhado na Ciência Hoje on-line, eu contrasto três modelos estruturais da variabilidade humana. Como já discutido em uma coluna anterior, o primeiro, baseado na divisão da humanidade em raças bem definidas, foi desenvolvido nos séculos 17 e 18 e culminou com o racismo científico da segunda metade do século 19 e com o movimento nazista do século 20. Esse equivocado modelo tipológico definiu as raças como muito diferentes entre si e internamente homogêneas. E foi essa crença de que as diferentes raças humanas possuíam diferenças biológicas substanciais e bem demarcadas que contribuiu para justificar discriminação, exploração e atrocidades.

O segundo modelo foi o populacional. Incorporando novos conhecimentos científicos, ele surgiu após o final da Segunda Guerra Mundial e fez a divisão da humanidade em populações, que passaram a ser corretamente percebidas como internamente heterogêneas e geneticamente sobrepostas. Infelizmente ele se degenerou em um modelo “populacional de raças” e tem sido compatível com a continuação de preconceito e exploração.

O que eu proponho agora é a substituição desses dois modelos prévios por um novo paradigma genômico/individual de estrutura da diversidade humana, que vê a espécie humana dividida, não em raças ou populações, mas em seis bilhões de indivíduos, genomicamente diferentes entre si, mas com graus maiores ou menores de parentesco em suas variadas linhagens genealógicas.

Esse terceiro e novo modelo genômico/individual valoriza cada ser humano como único, ao invés de enfatizar seu pertencimento a uma população específica, e está solidamente alicerçado nos avanços da genômica, especialmente na demonstração genética e molecular da individualidade genética humana e na comprovação da origem única e recente da humanidade moderna na África. Ele é fundamentalmente genealógico e baseado na história evolucionária humana – enfatiza a individualidade e a singularidade das pessoas e o fato de que a humanidade é uma grande família. Nele, a noção de raça humana perde totalmente o sentido e se desfaz como fumaça.

Modelo genômico/individual da humanidade

Humanidade sem raças?, livro do colunista publicado em novembro pela Publifolha.

A mensagem principal de meu livro é que devemos fazer todo esforço possível em prol de uma sociedade desracializada, que valorize e cultive a singularidade do indivíduo e na qual exista a liberdade de assumir, por escolha pessoal, uma pluralidade de identidades, ao invés de um rótulo único, imposto pela coletividade. Esse sonho está em perfeita sintonia com o fato demonstrado pela genética moderna de que cada um de nós tem uma individualidade genômica absoluta que interage com o ambiente para moldar uma exclusiva trajetória de vida.

Quero deixar claro que tal modelo genômico/individual não quer sugerir que as pessoas devam ser individualistas e não participem de coletividades. Muito pelo contrário, a afiliação à família, a grupos sociais e a nações é de extrema importância para o ser humano.

Mas é exatamente a consciência de sua singularidade e de sua completa liberdade de se engajar em quantas coletividades desejar, sem qualquer obrigatoriedade externa imposta por vínculos de cor, de sexo ou de nacionalidade, que permite a cada pessoa ter relacionamentos positivos e construtivos com outras, que, como ela, são singulares em seus genomas e em suas histórias de vida.

Esses relacionamentos devem ser estritamente voluntários e dinâmicos, não podendo assumir características estruturais, definitórias do indivíduo. Dessa maneira, a participação em coletividades nunca deve cercear a adoção de múltiplas identidades e nunca deve servir de motivação ou justificativa para divisão, conflito e ódio.

Pela união
Dezembro deve ser um mês de inclusões, uniões e sínteses. Nesta época atual de conflitos de civilizações e recrudescimento de ódio étnico e racismo, precisamos esquecer as diferenças superficiais de cor entre os grupos continentais (leia-se “raças”) e distinguir, por trás da enorme diversidade humana, uma espécie única, presente na Terra há poucos momentos da escala evolucionária, uma única família. Essa união será indispensável para alavancar um esforço solidário para combater a degradação ambiental do planeta, que ameaça a própria sobrevivência da nossa jovem espécie.

Em sua epístola aos Gálatas, São Paulo (circa 5 – 67) escreveu: “Não pode haver judeu nem grego, não pode haver escravo nem livre, não pode haver homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus.”

Parafraseando de forma laica, eu digo que “não pode haver europeu, nem africano, nem asiático, nem oceânico, nem ameríndio, não pode haver homem nem mulher, pois todos nós somos igualmente diferentes em uma humanidade única”. 


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
12/12/2008