Escopos e piadas

Na coluna do mês passado, tentei mostrar que certos fatos gramaticais só podem ser explicados coerentemente por teorias que possam fazer análises mais minuciosas das estruturas sintáticas. Nesta coluna, analiso outro conjunto de fenômenos similares, e faço apelo a um conceito mais geral, o de escopo.

Para compreender do que se trata, nada melhor do que um dado intuitivamente óbvio. Sejam orações como “Só Deus criou o mundo”, “Deus só criou o mundo” e “Deus criou só o mundo”. O exemplo vem dos clássicos, que chamavam essas orações de ‘exponíveis’, porque parecem períodos simples, mas, na verdade, são compostos, como se verá.

Na primeira, “só” se aplica a Deus; na segunda, a “criou”; na terceira, a “o mundo”. Assim, seu sentido é ‘Deus criou o mundo e mais ninguém o criou’, ‘Deus criou o mundo e nada mais fez’ (entre outras possíveis) e ‘Deus criou o mundo e mais nada’. Ou seja, o escopo de “só” muda em cada uma das orações, e é essa mudança de escopo que lhe dá um sentido preciso – desdobrado em duas orações.

Vejamos agora como a possibilidade de haver dois escopos cria a máquina necessária para que um texto seja uma piada:

    O noivo diz à noiva: “Acho que você quer casar comigo só porque herdei uma fortuna do meu tio.” Ela responde: “Imagina! Eu casaria com você mesmo que a fortuna fosse de outro parente qualquer”.
    Um sujeito diz a seu amigo: “Estou com vontade de transar com a Luiza Brunet de novo.” “Você já transou com ela?” “Não, mas já tive vontade antes.”

Independentemente das questões ideológicas e culturais envolvidas (que são cruciais), atenho-me à questão sintática, e que tem efeitos semânticos. Em ambas, a causa do humor é o fato de que tendemos a fazer uma determinada interpretação das primeiras falas, mas depois percebemos que a interpretação pode ser outra. Nas piadas, essa segunda interpretação é sempre surpreendente (o fator surpresa é crucial para as piadas, dizem os especialistas). A razão estrutural é uma mudança de escopo, ou melhor, a possibilidade de haver dois, o que gera uma ambiguidade.

Na primeira piada, lemos a fala do noivo como se “só” se aplicasse a tudo o que vem depois, a toda a oração que segue “porque”: a causa da ‘adesão’ da noiva é o noivo “ter herdado uma fortuna do tio”. Mas a resposta da noiva mostra que essa sequência pode ser desmembrada em diversas partes. Ela ‘faz de conta’ que entendeu que o noivo atribuía seu desejo de casar com ele ao fato de a herança ser “do tio”. Em vez de negar que casava por dinheiro, ela afirma que não se importa com a origem dele… Assim, em sua fala, “só” atinge apenas o final da fala do noivo, “de meu tio”, como se ele tivesse dito “só porque a fortuna que eu herdei é do meu tio” (se fosse de outro parente, você não casaria comigo).

Na segunda piada, há dois verbos que podem ser modificados por “de novo”: “ter vontade” (na verdade, uma locução) e “transar”. Por razões sintáticas (“de novo” está mais próximo de “transar” do que de “ter vontade”) e talvez também por outras, que aqui não vêm ao caso, uma das interpretações, a do amigo, parece mais ‘normal’, e é mais usual. Mas a resposta final mostra que a interpretação pode ser outra (também mais realista, convenhamos). De novo, a diferença entre as duas interpretações se deve à diferente seleção do escopo, agora do adverbial “de novo”: uma coisa é “ter vontade de novo”, outra é “transar de novo”. Uma também significa “ter tido vontade” e outra “ter transado”, mas este é outro fenômeno, que se pode chamar de pressuposto (outro tema interessante).

Questão de posição e interpretação

Na coluna passada, o conceito de escopo poderia ter sido invocado: construções como “para mim ler” se devem ao fato de que “eu” está no escopo de “para” (que exige pronome oblíquo mim); construções como “para eu ler” têm a oração “eu ler” no escopo de “para”; assim, a preposição não rege diretamente “eu”, não afetando sua forma. A representação ‘algébrica’ mostra as diferenças: [para eu (ler)] e [para (eu ler)]. Repetindo, da primeira deriva “para mim” porque “eu” está no escopo de “para”.

Há casos talvez mais interessantes, ou mais complexos, ou mais sutis. Uma sequência como “Ele não se elegeu porque teve pouco dinheiro para a propaganda” pode ser lida de duas formas: a) em uma, afirma-se que X não se elegeu e que sua não eleição se deve à propaganda pobre (“porque…” é a causa da não eleição); b) na outra, pressupõe-se que X não se elegeu, e se nega que a razão desse mau resultado tenha sido a propaganda pobre (as razões foram outras).

No primeiro caso, o escopo da negação (não) é “se elegeu”: ele “não se elegeu”. No segundo, o escopo da negação é a causa mencionada (negada), ou seja, toda a oração subordinada. Uma paráfrase seria: não foi porque teve pouco dinheiro que não se elegeu. Nesse caso, uma continuação compatível, até esperada, seria introduzida por “mas”: “mas porque a conjuntura não favorecia oposicionistas / situacionistas”…

As aulas de gramática poderiam ser mais interessantes se tratassem de temas que são mais reveladores das exigências que a língua põe aos ouvintes e leitores

Frequentemente, o escopo está em posição adjacente à palavra ‘regente’, como mostram os primeiros exemplos com “só”. Certamente a proximidade favorece determinadas interpretações. Mas o ‘texto’ pode exigir outra leitura, que, frequentemente, fica clara só quando se descobre que um elemento pode estar mais distante de seu escopo, mas, mesmo assim, o atinge.

Imagino que as aulas de gramática poderiam ser mais interessantes se tratassem de temas que são mais reveladores das exigências que a língua põe aos ouvintes e leitores e, ao mesmo tempo, mais úteis para a realização de atividades mais sofisticadas. Interpretações de texto públicas, como os julgamentos do Supremo, têm mais a ver com questões como as aqui apresentadas do que com “sublinhar o sujeito”… 

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas