Em 10 de outubro de 1996 foi homologada pelo Ministério da Saúde uma resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde dedicada à regulamentação de pesquisas “envolvendo seres humanos”.
Em seu preâmbulo, esclarece-se que o documento “incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado”.
Tratava-se de um enorme avanço na organização de um sistema de proteção aos sujeitos e populações expostos à pesquisa biomédica, ou seja, à intervenção da medicina sobre os corpos de seres humanos com vistas à produção de conhecimento científico.
O século 20 tinha assistido estarrecido ao comprometimento de uma boa parte da comunidade médica alemã com as propostas de ‘higiene racial’ do governo nazista e – sobretudo – com a realização de pesquisas de cunho altamente interventivo em vítimas daquele regime.
Deve-se lembrar que experiências tão questionáveis quanto foram conduzidas nas próprias democracias ocidentais, frequentemente fundadas na mesma doutrina médica da ‘degeneração’ que sustentara o racismo nazista. Vide o famoso caso do estudo de sífilis em Tuskegee, no Alabama, desencadeado em 1930 pelo Serviço Nacional de Saúde estadunidense, e as recém-divulgadas pesquisas realizadas na Guatemala nos anos 1940, também por cientistas dos Estados Unidos, para testar medicamentos contra doenças sexualmente transmissíveis. Na Guatemala, os pesquisadores teriam chegado a deliberadamente infectar pessoas com sífilis e gonorreia.
Voltemos à resolução nº 196, de 1996. Esta incorpora uma série de propostas e recomendações contidas em acordos e códigos internacionais, concebidos no âmbito de instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Conselho para Organizações Internacionais de Ciências Médicas (Cioms, na sigla em inglês) a partir do Código de Nuremberg, de 1947.
Concebida precipuamente para lidar com as situações de pesquisa na área médica (e suas tecnologias), a resolução acabou se propondo a regular todas as pesquisas envolvendo ‘seres humanos’, mesmo aquelas cujas características nada têm de tecnológicas ou interventivas, como as da sociologia, da psicologia (não experimental) e da antropologia. Uma rede de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), subordinados a uma Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) vinculada ao Ministério da Saúde, foi criada em todo o país, com atribuições universais de controle e fiscalização dos projetos de pesquisa.
‘Em’ seres humanos x ‘com’ seres humanos
Essa situação vem gerando um constante e desnecessário desgaste dos pesquisadores em ciências humanas, que devem apresentar protocolos de pesquisa construídos dentro dos parâmetros vigentes nas ciências médicas e biológicas e submeter seus projetos a comitês ignorantes do sentido e da lógica dessa outra área da vida científica moderna.
Mas esse não é o único problema advindo da regulamentação do Ministério da Saúde. Foi adotado obrigatoriamente para todos os tipos de pesquisa o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, essencial para as situações de cobaias humanas, mas completamente despropositado – pelo menos na forma em que é definido na resolução – para pesquisas não experimentais ou interventivas.
Para a antropologia, que se desenvolve na maior parte das vezes com sujeitos em situações dominadas, minoritárias, carentes ou marginais, esse mecanismo – se aplicado ao pé da letra – inviabilizaria a condução de numerosas pesquisas.
Se já é difícil entrevistar um policial corrupto, um trabalhador clandestino ou um usuário de drogas, imagina fazê-lo com a exigência da assinatura de um documento público! Sem falar nas complexas situações prevalecentes nas comunidades indígenas ou populações rurais analfabetas.
Um importante antropólogo brasileiro, desafiado por essa situação esdrúxula, cunhou uma agora corrente distinção entre pesquisas ‘com’ seres humanos e pesquisas ‘em’ seres humanos. Apenas estas últimas interferem diretamente na saúde e nas condições de vida das pessoas ou populações afetadas, devendo ser objeto de uma regulamentação específica.
Inadequada e insuficiente
Os pesquisadores das ciências humanas não ignoram nem subestimam a necessidade geral de um controle ético da ciência, e particularmente em sua própria seara. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) tem em vigor, nesse sentido, desde 1988, um Código de Ética relativo à ação de seus filiados.
Eles compreendem a absoluta necessidade de uma rigorosa regulamentação da pesquisa ‘em’ seres humanos, mas não consideram nem adequadas nem suficientes os preceitos da resolução 196 para seu próprio trabalho ‘com’ pessoas.
Luis Roberto Cardoso de Oliveira, em recente mesa-redonda sobre ética na Reunião de Antropologia do Mercosul, sublinhava o quanto pode ser enganosa a garantia oferecida pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, por não levar em conta a profundidade do comprometimento do pesquisador com o seu contexto de pesquisa nem a complexidade das situações de autonomia e responsabilidade dos agentes sociais envolvidos em tais processos.
A Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva lograram aprovar na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de julho de 2010 uma moção para a discussão e revisão das normas brasileiras emanadas do Ministério da Saúde.
Alerta-se para o fato de que se encontram em tramitação no Congresso Nacional dois projetos de lei que pretendem transformar a atual resolução em um texto legal ainda mais vinculante – com graves riscos para a existência da pesquisa em ciências humanas.
Em outubro de 2005, a Conferência Geral da Unesco adotou por aclamação a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, que visa regular “as questões de ética suscitadas pela medicina, pelas ciências da vida e pelas tecnologias que lhes estão associadas, aplicadas aos seres humanos, tendo em conta as suas dimensões social, jurídica e ambiental”.
Essa foi uma fórmula muito mais consequente e adequada do que a adotada pelo governo brasileiro, ao restringir seu escopo à área particularmente delicada da biomedicina.
A ética é uma consideração das condições em que a atividade humana interfere na vida de outrem, em nível pessoal ou coletivo. Também entre as próprias ciências é necessário que essa consideração prevaleça, garantindo a todas o pleno exercício de sua atividade.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fleischer, Soraya; Schuch, Patrice (orgs.). Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília: LetrasLivres e Editora Universidade de Brasília, 2010.
Fleischer, Soraya R.; Fonseca, Claudia; Schuch, Patrice (orgs.). Antropólogos em ação: experimentos de pesquisa em Direitos Humanos. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007.
Guerriero, Iara Coelho; Schmidt, Maria Luisa S.; Zicker, Fabio (orgs.). Ética nas pesquisas em ciências humanas e sociais na saúde. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008.
Victora, Ceres et al. (orgs.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: EDUFF/ABA, 2004.