Eu me vi lá de cima

Os filmes já mostraram a cena várias vezes: enquanto a equipe da emergência lança mão dos últimos recursos de ressuscitação, o paciente, cujo coração já parou de bater, vê um túnel de luz, avista seu corpo lá de cima e é acolhido serenamente por um parente querido. Assim seria a passagem para o lado de lá da vida — exceto nos casos em que, por desígnio divino, insistência dos médicos ou pura sorte mesmo, a pessoa volta para contar a estória.

Uma mulher na Suíça, no entanto, acaba de ter uma experiência parecida — sem correr o menor risco de vida. A paciente, que há 11 anos sofria de epilepsia, estava sendo avaliada para uma cirurgia de remoção do foco epiléptico. Como nenhuma lesão era visível no exame por ressonância magnética, a equipe do Dr. Olaf Blanke, do Hospital Universitário de Genebra, usou eletrodos posicionados sobre o cérebro da paciente para localizar precisamente a região do cérebro a ser removida.

Como a atividade elétrica do cérebro é anormal sobre o foco epiléptico, o simples registro pelos eletrodos é suficiente para indicar sua posição. No entanto, um procedimento adicional é de praxe: usar os eletrodos também para estimular regiões precisas do cérebro e, desse modo, identificar zonas ’vitais’, saudáveis, que não devem ser removidas.

A estimulação é feita com o paciente acordado e consciente, para que ele possa relatar as sensações provocadas. Estimular o cérebro com pequenas correntes elétricas não dói: embora receba sinais dos nervos do corpo todo, o cérebro não tem nervos que enviem sinais dele mesmo. Tudo corria como de costume com essa paciente de 43 anos: a estimulação de zonas auditivas, somatossensoriais ou motoras no cérebro provocava sensações auditivas, corporais ou movimentos do corpo.

Até que a estimulação em dois dos 64 pontos testados do lado direito do cérebro provocou uma sensação inusitada de deslocamento — ilusório, claro — do corpo inteiro: ao receber uma pequena corrente elétrica sobre o giro angular, a paciente sentia-se ’afundando na cama’, ou ’caindo no vazio’. A equipe, claro, não parou aí. Testaram uma corrente elétrica um pouco mais forte sobre os mesmos pontos e, como num filme sobrenatural, a sensação transformou-se em uma verdadeira experiência extra-corporal: de olhos abertos, a paciente dizia ver lá de cima, como se levitasse próxima ao teto, seu corpo deitado na cama.

Experiências extra-corporais ’naturais’ costumam ser transitórias e geralmente desaparecem quando se tenta inspecionar diretamente as partes do corpo envolvidas. Com a experiência extra-corporal provocada pela estimulação elétrica — e relatada pela equipe de Blanke na revista Nature em 19 de setembro — não foi diferente: quando a paciente fechava os olhos durante a estimulação ou olhava diretamente para seus braços e pernas, eles apenas pareciam se mover em direção ao corpo, ou encolher.

A posição do giro angular é privilegiada para integrar informações relativas à posição e a sensações complexas do corpo: ele fica na borda do lobo parietal, que já havia sido implicado anteriormente na percepção do espaço corporal, ou seja, na localização de objetos em relação ao corpo. De quebra, outro vizinho próximo é o córtex vestibular , que processa informações relativas à orientação da cabeça em relação à gravidade, inclusive sensações de peso ou leveza. Com vizinhos desse calibre, o giro angular talvez seja o lugar do cérebro onde nossa ’visão’ interna do corpo é criada.

Se for assim, a dissociação do corpo que caracteriza a experiência extra-corporal poderia ter uma explicação simples: uma falha na integração sensorial e vestibular que o giro angular normalmente desempenharia, causada, por exemplo, pela estimulação elétrica. Ou, na experiência de quase-morte, pela falência metabólica do cérebro.

Esta, de fato, é a explicação alternativa para quem quase foi, voltou e ficou tentado a acreditar que esteve do lado de lá mesmo. De acordo com a ’hipótese do cérebro morrendo’, defendida pela psicóloga Susan Blackmore e pelo neurocientista Michael Persinger, as experiências de quase-morte refletem o funcionamento residual em um cérebro que já não recebe o suprimento habitual de oxigênio e glicose.

O giro angular, cuja estimulação elétrica é capaz de gerar a percepção de desligamento do corpo, vem agora integrar o rol das regiões do cérebro normalmente responsáveis pelas sensações vividas durante a experiência de quase-morte. Talvez não por coincidência, todas essas regiões — inclusive o giro angular — têm algo em comum: elas dividem o suprimento de sangue fornecido pelas artérias cerebrais posteriores, que irrigam a parte de trás do cérebro. Quando o corpo começa a se desligar, talvez um dos resultados seja uma ’ativação de despedida’ dessas zonas do cérebro — e, com ela, as experiências que quem volta pode contar.

De qualquer forma, o fato de a percepção extra-corporal ser um fenômeno do cérebro, e não o desligamento da alma, não diminuiria a experiência na hora da quase-morte. E se isso de fato acontecer rotineiramente na hora da morte? Quer maneira mais bonita de se ir embora do que se despedir serenamente do corpo para ser acolhido por parentes queridos e saudosos? O cérebro, que nos permite uma vida prazerosa, pelo jeito até nos últimos momentos garante um final tranqüilo e digno a toda sua existência.

Fonte: Blanke O, Ortigue S, Landis T, Seeck M (2002). Stimulating illusory own-body perceptions . Nature 419, 269-270.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia