Já se foram 145 anos desde que o zoólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1919) propôs a teoria da recapitulação, que advogava que “a ontogênese recapitula a filogênese”. Trocando em miúdos, isso significa que a sequência de etapas do desenvolvimento embrionário dos animais mais avançados seria semelhante à sucessão de formas corporais que as diferentes espécies apresentaram durante a evolução. A ideia foi logo bombardeada pelos evolucionistas, que não conseguiram ver um peixe no embrião humano de alguma idade, nem uma tartaruga em algum estágio embrionário do coelho.
A teoria de Haeckel, entretanto, marcou profundamente o estudo das relações entre o desenvolvimento embrionário e a evolução das espécies, uma área da biologia que hoje se conhece pelo apelido evo-devo. Evo-devo é a biologia evolutiva do desenvolvimento, isto é, uma abordagem comparada dos mecanismos e sequências do desenvolvimento embrionário, de modo a iluminar como os genes poderiam gerar novas formas, funções e comportamentos no curso temporal da evolução.
Para a neurociência, essa abordagem é crucial, porque é uma das poucas maneiras de imaginar como se deu a evolução do cérebro desde o seu aparecimento nos primeiros vertebrados, até o grande e versátil cérebro dos seres humanos. Imaginar é o único recurso que se tem à mão para reconstruir as diferentes etapas da evolução do cérebro, já que apenas as estruturas rígidas do corpo (ossos e dentes) deixam fósseis para a posteridade.
Não há fósseis de cérebro, portanto. No máximo, os paleontólogos podem preencher com resinas – ou fazê-lo por meio de computação gráfica – os crânios fósseis que encontram em suas escavações, e obter um molde do que seria o cérebro daquela espécie.
Não pensem, no entanto, que os fósseis são inúteis. Muito ao contrário. Na verdade, constituem os únicos elementos realmente concretos que dão provas da evolução pregressa. E como sua idade pode ser determinada por técnicas físicas com bastante precisão, a sequência de passos da evolução ao longo do tempo pode ser determinada com razoável detalhe.
Ponto de virada
Foi desse modo que se pôde compreender que a evolução do cérebro dos primatas representou um ponto de virada, pois este passou a aumentar de volume em progressão mais rápida do que nas demais ordens de mamíferos. Em outras palavras: ocorreu um maior ritmo de crescimento do cérebro em comparação com o do crescimento do corpo. Foi assim que os seres humanos chegaram a cérebros de 1,4 kg, com 90 bilhões de neurônios, em corpos de 70 kg. Dentre os roedores, cérebros com esse número de neurônios só poderiam ser obtidos se os corpos crescessem a mais de 100 toneladas!
A biologia do desenvolvimento permite gerar hipóteses sobre o crescimento evolutivo do cérebro com base no seu crescimento embrionário. Como é possível identificar experimentalmente os genes envolvidos neste último fenômeno, supõe-se que os mesmos genes estivessem envolvidos naquele também.
O córtex cerebral, por exemplo, cresce bastante em superfície se compararmos diferentes espécies, mas praticamente não muda de espessura. O mesmo ocorre durante o desenvolvimento do embrião de cada espécie. Isso significa que o fator preponderante nesse crescimento deve ser a adição de novas colunas de neurônios que compõem o córtex.
Como essas colunas são geradas pela proliferação de neurônios em zonas germinativas especiais, a aposta de quase todos os pesquisadores é que animais com cérebros maiores surgiram de mutações que aumentavam o número de ciclos proliferativos das células precursoras, gerando mais colunas e portanto expandindo a superfície do córtex (confira uma animação que representa a intensa proliferação de neurônios nas protocolunas da zona germinativa do córtex embrionário).
Com base nisso, saíram todos em busca dos genes! E alguns foram encontrados, todos com nomes e siglas complicados, como é habitual entre os geneticistas: CDK5RAP2, ASPM, CENPJ… Boa parte deles constitui uma mesma família de genes associados a uma condição genética rara em seres humanos: a microcefalia primária recessiva. As pessoas portadoras dessa doença têm cérebros menores que a faixa normal (cerca de 30% menores), e apresentam sintomas neurológicos e psiquiátricos diversos. O que acontece é que os genes em questão sofrem mutações nesses pacientes, e o resultado é um crescimento insuficiente do cérebro durante a embriogênese.
Microcefalia e evolução
Recentemente essa ideia foi explorada por uma numerosa equipe de pesquisadores noruegueses e norte-americanos de diversas instituições de pesquisa, liderados por Lars Rimol, Anders Dale e Ole Andreassen. O grupo utilizou modernas tecnologias de biologia molecular para caracterizar as variantes dos genes da microcefalia, e correlacioná-las com o tamanho do cérebro, medido por meio de neuroimagem de ressonância magnética.
Foram incluídos no estudo quase 300 noruegueses e mais de 600 norte-americanos de ambos os sexos. Os participantes eram sadios na maior parte, mas havia entre eles alguns portadores de doenças neuropsiquiátricas.
Foi encontrada forte correlação estatística entre a área total do córtex cerebral de homens (mas não das mulheres) e a presença do gene CDK5RAP2, mencionado anteriormente. Importante: a correlação envolveu a área da superfície cortical, mas não a espessura. Os indivíduos que apresentavam as variantes desse gene tinham cérebros menores, especialmente no lobo frontal – região relacionada às funções cognitivas mais desenvolvidas na espécie humana. Não se encontrou qualquer alteração dessa correlação nos indivíduos esquizofrênicos, bipolares ou portadores de demências.
O que se pode concluir dessa interessante correlação estatística? Os genes da microcefalia são expressos justamente nas áreas proliferativas do cérebro dos embriões, codificando proteínas que atuam na multiplicação dos precursores neuronais. Assim, é muito provável que tenham sido eles que, ao aparecerem por mutação no genoma dos hominíneos há cerca de 3 milhões de anos, provocaram o extraordinário processo de crescimento do cérebro que mudou a face do planeta.
O estudo de genes do desenvolvimento, desse modo, permite extrair inúmeras conclusões sobre a evolução do cérebro, resultado mais do que gratificante da nova abordagem evo-devo, que tem nome rimado e pode ser uma solução…
Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
R.A. Raff (2007) Written in stone: fossils, genes and evo-devo Nature Reviews. Genetics, vol. 8:911-920.
P. Rakic (2009) Evolution of the neocortex: A perspective from developmental biology. Nature Reviews. Neuroscience, vol. 10:724-735.
A. Pierani e M. Wassef (2009) Cerebral cortex development: from progenitors patterning to neocortical size during evolution. Development, Growth and Differentiation, vol. 51:325-342.
L.M. Rimol e colaboradores (2010) Sex-dependent association of common variants of microcephaly genes woth brain structure. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 107:384-388.