Evolução? Mudança!

Durante algum tempo (no século 19, basicamente, mas é incrível como o tempo ideológico não passa!) acreditou-se que as línguas evoluem. Segundo o sentido mais comum da palavra, defendeu-se que haveria línguas primitivas, precárias (crença que ainda persiste em muitos domínios). Elas seriam faladas por sociedades também primitivas. Ambas evoluiriam, tornar-se-iam mais sofisticadas, adquiririam mais recursos, capazes de permitir a expressão de formas de pensamento mais complexas.

A tese caiu por terra em decorrência de dois argumentos: a) a análise das línguas ditas primitivas por gente que sabia o que estava fazendo mostrou que não há línguas primitivas, se elas forem consideradas ‘em si’, isto é, objetivamente, e em cada um de seus subsistemas (fonologia, morfologia, sintaxe, semântica); b) a comparação com as línguas ditas civilizadas mostrou claramente que certos subsistemas (como o dos casos) são partilhados por línguas ditas de civilização e línguas ditas primitivas. Portanto…

Na verdade, um terceiro argumento foi muito relevante: o latim e o grego, línguas altamente flexionais, sempre foram considerados exemplos de línguas ‘evoluídas’. Ora, essa avaliação deveria fazer com que o inglês fosse considerado ‘primitivo’, já que praticamente não tem flexões (poucas de número, nenhuma de gênero, pessoas verbais quase invariáveis etc.). Ora, considerada a ‘produção’ em inglês – literária, filosófica, científica etc. –, a tese é completamente insustentável. Portanto…

Os estruturalistas descobriram que cada sistema deve ser analisado imanentemente, sem comparação com outros (também em antropologia). Mas mesmo as comparações com outros sistemas destruíram a hipótese de que há línguas mais avançadas do que outras, qualquer que seja sua função (falar das coisas, produzir conceitos, narrar, fazer poesia ou chistes etc.). 

Cada falante típico de uma língua como o inglês conhece o mesmo número de palavras que conhece um falante de uma língua como o kaigang

O que pode ‘faltar’ em certas sociedades são certas instituições, que agenciam as línguas de maneiras específicas: a escrita, a literatura, a ciência, o direito, a filosofia etc. Mas, mesmo assim, as análises mostram que nenhuma delas afeta o cerne estrutural das línguas. A zona mais afetada é o léxico, mas ele não faz parte da ‘estrutura’ da língua e seu maior ou menor incremento depende de parâmetros externos a ela.

Certamente, nenhuma língua falada em sociedades nas quais essas instituições não existem pode ter tantas palavras quanto o inglês ou mesmo o português, cujos dicionários registram não só as proferidas por comunidades quase ‘isoladas’ – digamos, os falantes de um estado –, mas todas as já registradas, mesmo as específicas de certas comunidades (cientistas, por exemplo) e mesmo as que ninguém mais fala ou mesmo escreve. Cada falante típico de uma língua como o inglês emprega/conhece o mesmo número de palavras que emprega/conhece um falante de uma língua como o kaigang, por exemplo.

Curiosamente, a tese de que as línguas evoluem, acompanhando a evolução (progresso, complexidade?) das sociedades, convive com a tese de sua decadência. Uma das afirmações mais repetidas é que as línguas estão empobrecendo, são cada vez mais mal faladas, que as regras “que aprendi na escola com minha professora” não são mais seguidas, que se introduzem novas formas desnecessárias, que o patrimônio linguístico está sendo destruído, que as escolas não podem despejar analfabetos com diplomas (nem ensinar regras erradas!) etc. 

As queixas podem ser legítimas, mas são externas à língua. São de cunho social. De fato, são da ordem da etiqueta, que tem valor cultural, é óbvio, mas exatamente como tal.  

Poço
A tese de que as línguas evoluem convive com a de sua decadência. Diz-se que elas são cada vez mais mal faladas e que o patrimônio linguístico está quase no fundo do poço. As queixas podem até ser legítimas, mas são externas à língua. (foto: Cataclasite/ CC BY-SA 3.0)

Pode lá, mas não cá

É evidente que a língua é um patrimônio cultural importante. Mas é evidente também que as línguas não pioram. Elas só mudam. Ou evoluem, mas em outro sentido da palavra: adaptam-se às circunstâncias, às necessidades da sociedade que as fala/escreve. As mudanças são maneiras alternativas de expressar conteúdos, de significar, e também de organizar uma língua.

Muito frequentemente, variedades menos valorizadas de uma língua seguem aspectos da gramática valorizados (ou nunca criticados) de outra. Dou dois exemplos: o português ‘caipira’ adota uma conjugação verbal muito semelhante à do inglês, com pouquíssimas flexões. 

As mudanças são maneiras alternativas de expressar conteúdos, de significar, e também de organizar uma língua

Analisando canções ou causos que têm essa origem, pode-se depreender uma conjugação como “eu faço, você/ele/a gente/vocês/eles faz”. O fato pode chocar pessoas letradas, mas pouco curiosas. Se forem mesmo letradas, saberão um pouco de inglês, e este pouco inclui uma conjugação ‘simplificada’ (e também you tanto para você quanto para vocês e senhor/senhora!).

Além disso, saberão da regra (a lei, o fato) segundo a qual os verbos são sempre precedidos pelo sujeito. Ora, esta segunda característica (uma regra sintática) é seguida também pelos falantes ‘caipiras’, que nunca iniciam uma frase com algo como ‘faz’ (exceto para responder a uma pergunta ou dirigir-se diretamente ao interlocutor, como os falantes de inglês), sempre usam “nós/vocês faz”. Ou seja: a maior ou menor presença do sujeito é condicionada pelo menor ou maior número de flexões verbais.

Outro exemplo são construções como “sair para fora/entrar para dentro; subir para cima/descer para baixo”, condenadas como exemplos de ignorância. Ora, o inglês está cheio de verbos seguidos de preposições (come in, sit down, take off, pack on / in / off etc.). A ‘regra’ é a mesma. Diferente é só a avaliação social.

Isso significa que se ‘deve’ aceitar essas construções em português? Provavelmente não, pelo menos no jornal culto, na revista de classe média e na literatura não regionalista. Mas esta é uma decisão de ordem social, de classe, que leva em conta valores associados à elegância e à cultura ‘de salão’.

É uma decisão mais ligada ao campo cultural do que à estrutura da língua. É uma questão de gêneros textuais mais que de gramática. Uma decisão mais editorial do que gramatical ou factual.

Dir-se-á que as construções são redundantes. É claro. Mas a redundância não é bem-vinda em construções como “Talvez chova” (com duas marcas de possibilidade) ou “os livros estão caros” (com quatro marcas de plural)? 

O fato é que uma a língua (culta ou não) pode seguir critérios diferentes numa e noutra época, numa e noutra latitude

O fato é que uma língua (culta ou não) pode seguir critérios diferentes numa e noutra época, numa e noutra latitude. O que indica a fortíssima imbricação do sistema da língua (na verdade, dos sistemas que convivem na língua) e dos valores sociais e históricos.

As semelhanças levaram uma das mais prestigiadas teorias contemporâneas da linguagem (o gerativismo) a enfatizar o que é idêntico ou universal nas línguas do mundo, ao contrário do estruturalismo, que enfatizava o que é específico de cada língua ou família linguística.

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas