Quer deixar seu camundongo de estimação feliz? Ofereça-lhe uma rodinha de exercício, daquelas que parecem uma roda-gigante onde o bicho corre sem sair do lugar. Maratonistas, morram de inveja: roedores que dispõem dessa versão animal da esteira ergométrica correm cada dia mais um pouco, até chegar a impressionantes dez quilômetros por dia, mesmo com aquelas patinhas curtas. Humanos com acesso a academias, equipamento caseiro de ginástica ou uma boa estrada onde correr não são muito diferentes, desde que tenham tempo em suas mãos.
Camundongos engaiolados até que têm horas de sobra, mas passar tanto tempo se exercitando não é mera questão de falta de algo melhor a fazer. Exercício faz o cérebro se sentir bem, literalmente: ativa o mesmo sistema de recompensa envolvido em qualquer outro prazer cotidiano — inclusive sexo, drogas, rock’n’roll e um bom prato de comida. O curioso é que o mesmo exercício que proporciona prazer é tratado pelo corpo como fonte de estresse. Comece a correr e seu corpo reagirá com adrenalina, cortisol, e todas as mudanças associadas: pulso acelerado, deslocamento da circulação sangüínea para os músculos e a tão cobiçada queima de reservas de gorduras.
Como é que correr ou fazer qualquer tipo de exercício pode ser bom se o corpo se estressa, perde o fôlego e fica com os músculos doloridos? Tá certo que o instrutor pode ser um belo exemplar do sexo oposto e você queira fazer as outras duzentas abdominais que ele pede só para lhe agradar, mas o que faz todo o sofrimento se transformar em prazer?
Que não restem dúvidas: a corrida é razão de prazer, mesmo para reles camundongos. Se a corrida frenética, voluntária e compulsiva do seu bichinho não o convencer, experimente dificultar o acesso à rodinha. Seu camundongo fará o que for necessário — subir escadas, apertar botões, escalar grades — para poder usar a ’esteira’. Pense no bem-estar que você sente após a aula de ginástica e compreenderá!
Esse bem-estar parece ser coisa de opióides que o cérebro produz para si mesmo durante o exercício. Opióides são substâncias de ação analgésica e poderosos formadores de vício que incluem as conhecidas morfina e heroína, produtos vegetais e versões como a endorfina, encefalina e a dinorfina, fabricadas pelo próprio cérebro. Morfina e heroína agem diretamente sobre o sistema de recompensa do cérebro: elas ativam-no e ao mesmo tempo levam-no a um processo de habituação que faz com que doses cada vez maiores sejam necessárias para surtir o mesmo efeito. O outro lado da habituação é que, com a exposição prolongada às drogas, o que antes era o nível ’zero’ de atividade do sistema de recompensa, mantido sem que nada de especial fosse feito, agora depende de estimulação externa para ser atingido. O resultado é a síndrome de abstinência — o conjunto de sensações de mal-estar que fazem com que o comportamento passe a se dirigir totalmente à obtenção de mais estímulo para o sistema de recompensa.
Com o opióide produzido pelo cérebro em resposta à corrida não é diferente. Negue a um camundongo ou humano corredor de longa data acesso à sua rodinha ou estrada e ele exibirá todos os sinais de abstinência que você reconhece em alguém tentando largar o cigarro, como agitação e agressividade. O exercício, sobretudo o crônico, ativa diretamente o núcleo acumbente do sistema de recompensa do cérebro, mais especificamente aqueles neurônios do núcleo que produzem dinorfina e distribuem esse opióide a outras regiões do cérebro. Com apenas um mês de exercício diário na rodinha (e provavelmente já antes disso), a produção de dinorfina no núcleo acumbente do cérebro dos camundongos aumenta de forma crônica, em um exemplo de adaptação do sistema ao novo hábito. Não por acaso, um dos efeitos diretos da ativação dos neurônios que fabricam dinorfina é justamente o aumento da locomoção — correndo na rodinha, na esteira ou na estrada.
Preocupado de ver a sua corridinha matinal ser chamada vício? Não fique. Vício ela é, de fato — ao menos de acordo com a classificação emergente dos comportamentos que têm em comum a ativação do sistema de recompensa do cérebro. Mas, juntamente ao prazer da música, da comida, do sexo, do aprendizado e das pequenas e grandes realizações cotidianas, esse é um prazer que vem de dentro. Como tal, a ativação do sistema de recompensa acontece dentro de limites estipulados pelo sistema — dentro da ’margem de segurança’, por assim dizer. O resultado é que o cérebro consegue lidar com os ajustes necessários, e busca constantemente nova estimulação como em qualquer outro vício, mas sem chegar a extremos que desviem o comportamento em direção a uma busca constante de níveis anormalmente altos de atividade do sistema de recompensa que só podem ser atingidos pela ação direta de drogas.
O melhor é que o resto do corpo também se adapta ao novo hábito do exercício. A capacidade cardíaca aumenta, a respiração se torna mais eficiente, o colesterol circulante diminui, os músculos se desenvolvem, passam a consumir mais energia, e assim cada vez menos gordura é depositada naqueles pneuzinhos indesejáveis. Os camundongos podem não se importar muito em ficar mais ou menos elegantes, mas talvez isso sirva de ajuda a você: se a perspectiva de toda aquela dinorfina no sistema de recompensa não for suficiente para tirá-lo da cama, tente imaginar a ativação do seu sistema de recompensa ao descobrir que aquela roupa especial voltou a lhe caber. E aí, vai largar o controle remoto e encarar?
Werme M, Thorén P, Olson L, Brene S (2000). Running and cocaine both upregulate dynorphin mRNA in medial caudate putamen. European Journal of Neuroscience 12, 2967-2974.
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia