Fabricados e turbinados

Na coluna de abril de 2010, apresentei alguns avanços da neurociência em direção à produção de um cérebro totalmente artificial. Embora a pesquisa científica e tecnológica esteja muito longe desse objetivo, resultados de estudo recém-divulgado são animadores no que tange ao desenvolvimento de tecidos artificiais.

No último dia 16 de novembro, a revista Science publicou um artigo de uma equipe internacional – com a participação de cinco brasileiros liderados por Douglas Galvão, professor do Instituto de Física da Unicamp – relatando avanços interessantes na fabricação de músculos artificiais, com relevante potencial de aplicação.

Na literatura científica, o tema ‘músculo artificial’ começa a aparecer no início dos anos 1960, mas, de fato, estudos que viabilizaram essa linha de pesquisa tiveram início por volta de 1880, a partir do trabalho pioneiro do físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen, que criou o que hoje se denomina atuadores de elastômero dielétrico, popularmente conhecido como músculo artificial.

O tema ‘músculo artificial’ começa a aparecer no início dos anos 1960, mas, de fato, estudos que viabilizaram essa linha de pesquisa tiveram início por volta de 1880

No dispositivo desenvolvido por Röntgen, uma fita elástica realiza movimentos de contração e expansão induzidos por cargas elétricas de sinais contrários depositadas na superfície do elastômero (polímero que apresenta propriedades ‘elásticas’). Trata-se de uma ideia genial, recuperada por Christoph Keplinger e seus colaboradores por volta de 2010. Ela tinha sido abandonada no século 19, no contexto da revolução industrial, quando os motores exigiam dispositivos similares confeccionados com materiais metálicos resistentes a grandes tensões.

Quando os elastômeros voltaram à ordem do dia, no início da década de 1960, eram usados em sistemas pneumáticos (que funcionam a gás). Trinta anos depois, cientistas e engenheiros voltaram-se para algo similar à ideia proposta por Röntgen, dando início à era dos polímeros eletroativos (EAP, na sigla em inglês) ou dos atuadores de elastômeros dielétricos (DEA, na sigla em inglês), outra denominação para o mesmo tipo de material.

Desde então, mais de 600 artigos foram publicados na literatura internacional com inúmeras alternativas tecnológicas para os músculos artificiais, quer seja na escolha do material ou na escolha do processo elétrico para dar-lhe movimento.

O poder da parafina

O trabalho recentemente publicado na Science chama a atenção pela qualidade do músculo artificial desenvolvido. Vejamos o que tem esse material de tão interessante. Em primeiro lugar, é feito com camadas de nanotubos de carbono, um material tão leve quanto o ar e tão forte quanto o aço. Até aí, nada de novo; muitos projetos de músculos artificiais já foram feitos com esse material.

A novidade é o uso de parafina no lugar do eletrólito líquido, o condutor de eletricidade comumente aplicado na confecção de músculos artificiais. Ou seja, em vez de imergir os nanotubos num eletrólito líquido, a parafina é intercalada entre as camadas desses nanotubos, alinhadas verticalmente numa espécie de floresta de nanotubos. Os fios são obtidos torcendo várias camadas de nanotubos superpostas, como se faz com qualquer tecido, de modo que a trança resultante fica com seu interior todo parafinado. E isso faz toda a diferença em termos operacionais.

Parafina
Grânulos de cera de parafina. A novidade por trás da descoberta está nesse material, usado no lugar do eletrólito líquido. Para confeccionar o novo músculo artificial, pesquisadores intercalaram a parafina entre várias camadas de nanotubos de carbono e as torceram para formar fios ultrarresistentes. (foto: Wikimedia Commons)

A corrente elétrica produzida por uma voltagem aplicada nas extremidades do fio aquece a parafina e a faz expandir. Essa expansão exerce força sobre os nanotubos, produzindo um movimento de rotação superior a 11 mil rotações por minuto (RPM). Para se ter ideia dessa ordem de grandeza, basta lembrar que um disco rígido de computador gira a uma rotação de aproximadamente 7 mil RPM. Resfriando a parafina, tem-se rotação no sentido contrário.

Além disso, o fio é capaz de suportar um peso 100 mil vezes superior ao seu próprio. Isso significa que ele é capaz de suportar um peso 200 vezes superior àquele suportado por um músculo natural de mesmo diâmetro.

Os pesquisadores também descobriram que o fio, mesmo sem a parafina, pode ter um coeficiente de expansão térmica impressionantemente alto e negativo. Ou seja, aquecendo o fio, ele se contrai.

Nos experimentos realizados, observou-se contração de aproximadamente 7% do tamanho do fio quando aquecido a uma temperatura de aproximadamente 2.500 graus Celsius, um resultado jamais alcançado com outros músculos artificiais.

No vídeo abaixo, um dos autores do trabalho descreve, em inglês, o fio de nanotubo de carbono desenvolvido

O vídeo é uma cortesia da Universidade do Texas, em Dallas (EUA)

Aplicações promissoras

Essa propriedade possibilita o uso desses fios em tecidos inteligentes, capazes de suportar temperaturas entre -50 e 2.500 graus Celsius. Para isso, esses tecidos ficariam menos porosos à medida que a temperatura ambiente baixasse, protegendo o corpo do frio, ou mais porosos com o calor, para aumentar o conforto térmico.

A dispensa de eletrólitos, a baixa voltagem de operação, o grande ciclo de vida operacional e as altas tensões suportadas colocam esses músculos artificiais em excelente padrão de competitividade

Os tecidos inteligentes, no entanto, representam apenas uma das diversas possibilidades de aplicação do novo material. A dispensa de eletrólitos, a baixa voltagem de operação, o grande ciclo de vida operacional e as altas tensões suportadas colocam esses músculos artificiais em excelente padrão de competitividade, mesmo em comparação com a liga NiTi, o principal material com memória de forma (que lembra uma forma predefinida e retorna a ela depois de sofrer deformação) utilizado comercialmente.

Espera-se também inúmeras aplicações biomédicas, desde que questões de biocompatibilidade sejam investigadas. Uma aplicação óbvia nesse campo é na confecção de cateteres para cirurgias menos invasivas.

Com o avanço das pesquisas na área, quem sabe não nos aproximamos dos cérebros artificiais? Fato é que ainda restam muitos desafios…

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana