A grande maioria dos estudiosos da evolução da vida no planeta já não tem mais dúvidas de que as aves descendem dos dinossauros. As aves e os dinossauros são considerados parte do grupo conhecido como Archosauria. Os arcossauros, por sua vez, pertenceram ao grupo dos diapsídeos, animais que possuíam duas aberturas temporais em cada lado do crânio e que deram origem aos grupos de répteis atuais e aos extintos pterossauros, animais voadores considerados ‘irmãos dos dinossauros’. Evidências baseadas no registro fóssil indicavam que esses animais divergiram para os ancestrais das aves atuais há cerca de 65 milhões de anos.
As aves teriam se originado de um grupo de dinossauros chamados de terópodes, que inclui formas carnívoras como o Tyrannosaurus rex, dos Estados Unidos. A foto mostra uma réplica do esqueleto desse réptil, exposta no Palácio da Descoberta, em Paris (foto: Wikipédia).
Mais especificamente, as aves teriam se originado a partir de um grupo de dinossauros chamados de terópodes, que reúne formas carnívoras como o Santanaraptor do Brasil e o Tyrannosaurus rex dos Estados Unidos. Pode parecer estranho para os leitores, mas, salvo algumas poucas exceções, os pesquisadores que estudam fósseis ou dados biomoleculares consideram as aves como dinossauros modificados, que aprenderam a voar!
Existe um volume considerável de evidências desse parentesco e algumas das principais características que até pouco tempo atrás eram tidas como exclusivas das aves – como as penas – foram encontradas em animais que são considerados dinossauros típicos. Um exemplo é o dinossauro Microraptor gui, que há alguns anos foi descoberto na China em rochas com 120 milhões de anos e que, com suas penas, trouxe uma nova perspectiva para essa questão.
Mesmo assim, ainda há uma série de pontos polêmicos sobre esse parentesco: quando surgiram os principais grupos de aves modernas? Quando elas teriam divergido dos dinossauros ‘típicos’ – também chamados de dinossauros não avianos?
De uma forma geral, os dinossauros foram os vertebrados predominantes em nosso planeta durante longuíssimos 160 milhões de anos, estendendo seu domínio entre o período Triássico (há 230 milhões de anos) e o fim do Cretáceo (há 65 milhões de anos).
Esses répteis alcançaram um imenso sucesso evolutivo jamais igualado por qualquer outro grupo de vertebrados, tendo ocupado os mais diversos hábitats disponíveis no planeta e compreendendo, talvez, centenas de milhares de espécies diferentes, a maioria ainda por ser encontrada. Uma teoria levantada por alguns pesquisadores chega a imaginar que, se não tivessem sido extintos, os dinossauros talvez ainda dominassem o nosso planeta e os mamíferos seriam representados apenas por pequenos animais semelhantes aos roedores.
O arqueopterix (Archaeopteryx lithographica) é uma espécie de ave primitiva que preserva características típicas dos dinossauros. Na foto, um modelo do animal exposto no Museu de História Natural da Universidade de Oxford, na Inglaterra (foto: Michael Reeve).
Os paleontólogos tendem a afirmar que os principais grupos de aves modernas se desenvolveram apenas há 65 milhões de anos, após o limite entre o Cretáceo e o Paleógeno (antigamente chamado de Terciário), quando houve uma dramática mudança ambiental que extinguiu diversos grupos de animais e plantas, incluindo os dinossauros não avianos. Apenas as aves teriam sobrevivido e, na ausência dos demais dinossauros, se diversificado, dando origem a diversos grupos modernos.
Os biólogos moleculares, por sua vez, acreditam que os principais grupos de aves modernas surgiram bem antes: ainda no Cretáceo. Dessa forma, teriam sido anteriores à grande extinção dos dinossauros.
Evidências que sustentam essa posição foram publicadas em 28 de janeiro último na revista BMC Biology Journal, em artigo assinado por David Mindell, da Universidade de Michigan (Estados Unidos), e por pesquisadores das Universidades de Chicago e Boston (também nos Estados Unidos) e do Centro para Conservação da Biodiversidade do México. Os resultados dessa equipe sugerem que o surgimento dos principais grupos de aves atuais pode ter se dado há cerca de 100 milhões de anos, bem antes do que foi estimado pelos paleontólogos.
Lacuna no registro fóssil?
Mas os paleontólogos vêem com certo ceticismo os achados da equipe de Mindell, pois ainda não foram encontrados fósseis que confirmem os resultados sugeridos pelos dados genéticos moleculares e pelo tratamento matemático e estatístico dado à questão no estudo. Se Mindell e colegas estiverem corretos, haveria uma importante lacuna no registro fóssil das aves, ao contrário do que afirmam muitos paleontólogos.
Segundo os autores dessa pesquisa, isso ocorre porque os registros fósseis, baseados em aspectos anatômicos, acabam por subestimar mudanças sutis que podem contribuir para processos de especiação. Dessa forma, duas espécies morfologicamente similares poderiam ser consideradas uma espécie única. Além disso, deve ser lembrado que as evidências fósseis, mesmo de grupos bem representados, são raras e, muitas vezes, incompletas.
Os dados genéticos apresentados pelo estudo são baseados no tempo médio gasto para que as mutações casuais em um determinado gene aconteçam. A ocorrência de divergências moleculares em proteínas ou no DNA tem sido considerada uma espécie de ‘relógio molecular’ e uma fonte confiável para a datação de mudanças evolutivas.
Linus Pauling (na foto, em 1954) foi um dos criadores da hipótese do relógio molecular, que seria uma alternativa ao registro fóssil utilizado tradicionalmente para a análise da evolução das espécies (foto: Wikipédia).
A criação da hipótese do relógio molecular é atribuída ao biólogo austríaco Emile Zuckerkandl (1922-) e ao químico norte-americano Linus Pauling (1901-1994), que, em 1962, notaram que a divergência no número de aminoácidos da hemoglobina entre espécies diferentes relacionava-se com a distância evolutiva desses seres. Zuckerkandl e Pauling sugeriram que essa divergência ocorreria de uma forma constante ao longo do tempo e seria, portanto, uma alternativa ao registro fóssil utilizado tradicionalmente para a análise da evolução das espécies.
Segundo a teoria do relógio molecular, as regiões genômicas submetidas a uma baixa seleção evolutiva (substituições silenciosas) apresentariam taxas de substituição de 0,7 a 0,8% a cada milhão de anos em bactérias, mamíferos, invertebrados e plantas. Por outro lado, regiões genômicas submetidas a uma forte seleção genética e que devem, devido a sua importância para o funcionamento celular, se manter praticamente intocadas (como as regiões codificadoras de RNA ribossômico) sofreriam mudanças de forma bem mais gradual, alcançando uma taxa de cerca de 1% a cada 50 milhões de anos.
Contudo, recentemente tem sido mostrado que essa taxa de divergência não é a mesma para todos os grupos analisados e que, mesmo dentro de um determinado grupo, podem ocorrer períodos de aceleração ou de decréscimo nessas mudanças. Alterações nos períodos entre gerações (as mutações se fixam apenas de uma geração para a outra) e no tamanho populacional, além de diferenças metabólicas, evolutivas e ecológicas entre espécies ou na intensidade do mecanismo da seleção natural e mudanças evolutivas nas proteínas codificadas podem afetar a velocidade do relógio molecular.
Novos métodos mais realistas e confiáveis podem, no entanto, diminuir as divergências entre os achados paleontológicos e moleculares. O grupo de Mindell, por exemplo, em sua pesquisa sobre a origem das aves, tentou evitar a disparidade entre esses tipos de análises examinando um número maior de grupos taxonômicos e de caracteres genéticos. Além disso, os pesquisadores procuraram incluir em seu modelo estatístico análises da heterogeneidade e da incerteza das mudanças evolutivas entre os diferentes grupos analisados, além de pontos de calibração dos registros obtidos.
Porém, uma grande quantidade de paleontólogos se pergunta: se pesquisadores como Mindell estiverem certos, onde estão os fósseis, que seriam os dados materiais que comprovariam essa hipótese? Assim, podemos dizer que o estudo de Mindell e colaboradores amplia a divergência entre dados paleontológicos e moleculares. Isso indica que há ainda um considerável caminho a ser percorrido antes que a distância entre paleontólogos e biólogos moleculares seja encurtada e que ambos os grupos possam falar uma mesma língua. Novas escavações em depósitos que tenham se formado perto do limite entre o Cretáceo e Paleógeno mostrarão no futuro quem tem razão.
Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line e
Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
07/03/2008
SUGESTÕES PARA LEITURA
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