O vocabulário sobre as emoções na cultura ocidental contém muitas áreas de imprecisão e ambiguidade, o que enseja a impressão comum de não corresponder a representações sociais sistemáticas, recorrentes e obrigatórias. Desejo e fantasia são algumas dessas categorias que deslizam com frequência em nossa linguagem, como se expressassem apenas volúveis devaneios da vida individual de cada um de nós.
Tanto as psicologias quanto as ciências sociais enfrentam o desafio de compreender os modos pelos quais se estruturam essas dimensões da experiência humana – e como emergem e intervêm nas tramas da vida social.
Já nos primeiros tempos das ciências sociais, temas como os do ‘ideal’, da ‘imitação’, da ‘influência’, da ‘autoridade’, do ‘transe’ se impunham nessa área sutil da constituição coletiva da vida dita ‘subjetiva’ dos sujeitos. Dimensões que, sob a forma das ‘paixões’ e da ‘imaginação’, já haviam motivado os filósofos sociais desde o século 17, devido à sua crucialidade nas esferas da família, da religião, da política e da prática econômica.
A capacidade de imaginação e de projeção futura de imagens ideais, desejáveis, é uma dimensão essencial da construção dos sentidos do mundo em qualquer sociedade. Entre nós, essa capacidade é sobrevalorizada como chave da ideologia do progresso e da mudança, sob a forma da ‘criatividade’ e da ‘invenção’. Tanto nossas ciências como nossas artes e nossos meios de comunicação são lugares regulares do cultivo e fomento da imaginação ideal.
Graças ao extraordinário desenvolvimento da criatividade científica, produziram-se recentemente novos recursos públicos de compartilhamento da fantasia e do ideal, concentrados na comunicação digital e na possibilidade de sua circulação em ‘mundos virtuais’.
A esfera da internet, com suas múltiplas possibilidades de invenção e comunicação, abriga hoje formas cada vez mais complexas de troca social, a partir de posições máximas de individualidade, intimidade e exclusividade. Cada sujeito social exercita sua vontade e obedece ao seu desejo de forma singular, ao acessar o espaço virtual e encaminhar na tela suas opções de navegação. Esse espaço é, no entanto, apenas uma nova versão dos espaços sociais reais, essenciais para o estabelecimento de uma identidade humana.
Imperiosa condição
Acabo de participar, no 36º Encontro da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), de um Grupo de Trabalho sobre ‘sexualidade e gênero’, em que diversas comunicações puseram em cena os mundos virtuais, do ponto de vista das fantasias sexuais ou eróticas para ali transpostas e ali retrabalhadas e vivenciadas.
Do ponto de vista dos organizadores do grupo, trata-se de uma coincidência imprevista; do ponto de vista da experiência social que cabe aos antropólogos interpretar, trata-se de uma imperiosa condição: os desejos e as fantasias eróticas, tão essenciais para a vida humana, encontram no espaço virtual uma arena privilegiada para se desenvolver, já que podem circular em uma esfera de trocas muito ampliada, em um gigantesco mercado de opções, com altas garantias de anonimato e baixas exigências de dispêndio econômico.
Ana Paula Vencato tratou das mulheres que se relacionam com crossdressers masculinos na vida real e que têm suas ambivalentes experiências compartilhadas em redes virtuais; Laura Lowenkron explorou “a construção dos marcadores corporais da menoridade em investigações policiais de pornografia infantil na internet”; Débora Leitão apresentou sua pesquisa sobre “sexualidade e mercado erótico no mundo virtual Second Life”; Carolina Parreiras tratou da produção de pornografia alternativa na internet; e Weslei Lopes da Silva discutiu as “representações e vivências do corpo feminino em interações sexuais pagas no ciberespaço”.
Outros trabalhos não focados na internet, como o de Amaro Braga Júnior sobre a ‘homoafetividade’ em quadrinhos japoneses, permitiram uma comparação frutífera entre diferentes conjugações da fantasia erótica contemporânea no Brasil.
Virtualidade e realidade
Muito se pode discutir as condições da pesquisa em tais contextos: o acesso às redes e grupos; a ética da relação com os interlocutores; a fluidez e impermanência dos círculos de interação; a dificuldade de proceder a correlações entre as condições ‘reais’ dos sujeitos plugados e as que são encenadas por seus avatares on-line.
Em outro nível de preocupações, o próprio estatuto da ‘virtualidade’ é muito discutível, já que as experiências desencadeadas nesse meio são também ‘reais’ ao seu modo; no registro da relativização a que se dedica a antropologia sobre a concepção de realidade característica de nossa cultura.
Afinal de contas, a leitura de um romance, a realização de uma viagem, a fruição de um concerto musical, a experiência de um ritual religioso ou de absorção de um alucinógeno são todas elas experiências fantásticas de efeitos imediatamente concretos, de máxima implicação para a vida ‘real’ de cada um de nós.
A internet corresponde, assim, a uma nova dimensão de reverberação de todos os desejos e de todas as fantasias formuláveis em nosso código cultural, com potenciais de realização em escala de massa e com algumas propriedades singulares, que os estudos tentam discernir.
Novos horizontes de relação entre o público e o privado são evidentes – e afetam particularmente as experiências eróticas. Também se apresenta aí uma nova fronteira entre a sensibilidade corporal imediata e as mediações intelectuais e cognitivas, o que desafia as convenções tradicionais da satisfação do desejo e da atualização da fantasia.
E a própria fronteira entre a fantasia e a realidade pode se refundir, como na criminalização da posse de imagens de pornografia infantil num computador pessoal, estudada por Laura Lowenkron: um crime de fantasia numa fervilhante galáxia de desejos.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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