Com certa frequência, cidades como Petrópolis, Teresópolis e Angra dos Reis, todas no estado do Rio de Janeiro, são objeto de notícias tristes no verão: deslizamentos, alagamentos, mortes e prejuízos devido a temporais e chuvas torrenciais.
No entanto, a recente tragédia que se abateu sobre a região serrana do Rio de Janeiro é inédita em muitos aspectos: pela violência da chuva, pela extensão da área atingida (que englobou Petrópolis, Teresópolis, Friburgo e arredores) e pela severidade das perdas humanas e materiais.
As imagens remetem mais a uma convulsão do que a uma tempestade: os rios mudaram de curso, há agora morros onde havia áreas planas. Enormes blocos de pedra jazem por todo lado. O evento já é chamado de pior tragédia ambiental do Brasil. Entre as agudas, em que há perdas massivas e abruptas, é sem dúvida a pior.
Desta vez, culpou-se – com mais intensidade – o desmatamento, a ocupação irregular de encostas, a leniência do poder público e – novidade – falou-se em mudanças climáticas globais. Até lembrou-se que os climatologistas vêm alertando há tempos sobre o aumento de eventos extremos, como secas, enchentes, tempestades severas, furacões e outros rigores naturais – mas não muito, já que sua frequência e severidade aumentam conforme a elevação da temperatura, ao sabor das diversas atividades humanas que contribuem para isso.
Causas naturais e antrópicas
Então, a tragédia da serra fluminense é natural ou provocada pelo homem? Aqui temos que separar a discussão em dois pontos: há a chuva em si e há as suas consequências.
No primeiro item, a discussão é bizantina: nunca saberemos se a megachuva era natural ou se havia dedo nosso, pela simples razão de que já não há mais nada natural em lugar nenhum do planeta; nosso dedo está em todo canto, visível ou não, onipresente, mas longe de onisciente.
Uma chuva dessas poderia ter ocorrido num planeta igualzinho, mas sem humanos? Certamente. E com humanos? Mais provável. Se isso fosse tema de um hipotético julgamento, essa declaração do perito provocaria muxoxos no júri.
E quanto às consequências da chuva? Nesse caso, além do sofrimento pela perda de tantas vidas, temos o sofrimento moral de saber que elas eram perfeitamente evitáveis.
Como todos os anos, a mídia procurará geólogos e outros especialistas que explicarão com maquetes e animações por que as encostas do Sudeste brasileiro são áreas de risco em caso de chuva forte. Outros estimarão o número de pessoas vivendo nessas áreas – são 115 mil apenas na cidade de São Paulo –, lembrarão os relatórios e diagnósticos já elaborados e enviados aos setores competentes e mostrarão eloquentes fotos aéreas datadas documentando o expressivo crescimento urbano em áreas de risco.
Risco natural
E por que o risco é tão alto nessas encostas? Basta olhar para os deslizamentos para entender.
As encostas mais frágeis são finas camadas de solo sobre pedra lisa. Esse solo é fruto da lenta decomposição da própria rocha. Onde a rocha é muito íngreme, o solo não se acumula e temos os pães-de-açúcar, os morros Dois Irmãos, as pedras da Gávea e muitos outros acidentes geográficos semelhantes e de rara beleza Brasil afora. Todos têm vegetação em seus topos, mas em suas encostas de pedra nua só bromélias, cactáceas e poucos outros organismos sobrevivem.
A fragilidade geológica de nossas encostas fica evidente quando, sempre no verão, vemos deslizamentos importantes na serra do Mar em áreas onde a mão do homem nunca pôs o pé.
É simples: a rocha é lisa e impermeável, o solo, permeável e pesado. Ao atingir a rocha, a água escorre, formando um filme que diminui mais ainda o já reduzido coeficiente de atrito entre solo e rocha. A surpresa não é a encosta deslizar, e sim o deslizamento não ser mais frequente. Muitas encostas estão por um fio sem que desconfiemos, sustentadas pela trama de raízes, galhos e cipós que insiste em crescer ali.
Portanto, temos especialistas, dados conclusivos, relatórios consolidados, sugestões e orçamentos. As sugestões são óbvias, entre elas, não ocupar essas áreas e remover para áreas seguras quem já estiver pendurado por lá.
Mas esbarramos sempre no mesmo obstáculo: ninguém parece capaz de impedir a ocupação irregular e ninguém tem coragem de remover os ocupantes já estabelecidos. E as chuvas param, os mortos são enterrados, até recomeçarmos tudo outra vez no ano que vem.
Raízes socioeconômicas
E agora chegamos às causas profundas e incômodas da tragédia, todas relativas a fatores socioeconômicos bem humanos.
Para começar, somos numerosos demais. A demanda por emprego e moradia cresce mais rápido do que a oferta. O campo segue exportando gente para a cidade.
Os ocupantes de áreas de risco são eleitores e, geralmente, de baixa renda. As forças que promovem a ocupação são privadas e ágeis; as que deveriam regulá-la são públicas, não têm metas de desempenho, nem há consequências se eventuais metas não forem atingidas, já que seus agentes são estáveis, se não de direito, de fato. Suas agências e instituições não se comunicam, seus chefes estão lá mais por fidelidade partidária que por competência técnica. Na última eleição, herdaram de seus antecessores uma terra arrasada e legarão o mesmo a seus sucessores.
Quando as encostas vierem abaixo, sobrarão emocionantes histórias de heroísmo e solidariedade e esqueceremos o patrimonialismo, a fragmentação, a leniência, o nepotismo, a corrupção e a impunidade.
Para concluir como o noticiário, com algo mais animador, trago o exemplo eloquente do prefeito de Areal, na região serrana fluminense recentemente atingida. Avisado da cabeça d’água pelo prefeito da cidade rio acima, gravou às pressas um aviso transmitido por antiquado, mas eficiente, carro de som, pedindo a todos que se afastassem da margem do rio. Deu certo. Ali ninguém morreu.
Todos vimos a chuva. Temos telefone, celular, twitter, internet, megafones, sinos, fogos. Tecnologia há. Falta bom senso e gestão.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro