Formato mínimo

Tela a óleo de Fred Rogers batizada de  Mr. Rogers After Eating A Solid Gold Brick .

Os esforços de seqüenciamento do genoma humano empreendidos nos últimos anos demonstraram que o homem tem cerca de 25 mil genes, um número similar ao encontrado em camundongos e chimpanzés, por exemplo, e inferior ao total encontrado em outros organismos menos complexos que nossa espécie. Demonstrou-se também que nossos genes representam apenas uma porção mínima de nosso DNA e estão dispersos como se fossem oásis em meio a um enorme deserto de regiões não-codificantes, que perfazem cerca de 98% de nosso genoma e são conhecidas como DNA-lixo.

Esse seqüenciamento, obtido após um esforço descomunal para analisar os cerca de 2,9 bilhões de pares de bases nitrogenadas que compõem nosso genoma em uma das mais caras empreitadas científicas da história, decepcionou grande parte das pessoas, pois se esperava encontrar cerca de 120 mil genes. Na época da finalização desse seqüenciamento, o resultado foi amplamente citado como uma lição de humildade para o homem, mais ou menos como fez o cientista italiano Galileu Galilei (1564-1642), quando afirmou que nosso planeta não era o centro do universo, ou o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), quando disse que nossa espécie era um ‘primo’ dos macacos.

Porém, esse número diz muito pouco sobre a complexidade genética de qualquer espécie, e atualmente especula-se que esse parâmetro possa ser definido pelas interações entre genes diferentes – muitas vezes com localização distante – e entre estes e as regiões de DNA-lixo. Além disso, acredita-se que os genes que regulam o funcionamento de diversos outros genes e a capacidade do genoma de gerar proteínas diferentes a partir de um mesmo gene (edição alternativa) possam também contribuir para a complexidade genômica de uma espécie.

Estrutura do genoma humano obtida a partir de um cariótipo (A); e aspecto dos cromossomos humanos (B).

Apesar do aspecto intrincado do genoma, a ciência tem obtido grandes avanços em relação ao seu conhecimento, principalmente através da utilização de organismos-modelo, como camundongos e a bactéria Escherichia coli . Atualmente também dispomos de um arsenal de técnicas de biologia molecular que permitem introduzir, modificar ou mesmo inibir o funcionamento de diversos genes. As plantas e animais transgênicos talvez sejam o exemplo mais conhecido do sucesso dessa tecnologia.

Biologia sintética
Esses avanços científicos na manipulação do genoma levaram um grupo de pesquisadores, liderados por Tom Knight e Drew Endy, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (Estados Unidos), a propor a introdução simultânea de grande número de genes em bactérias. Assim, poderíamos criar espécies novas desses seres a partir da substituição de parte de seus genes por outros, de uma maneira similar ao que fazíamos quando brincávamos de construir, destruir e modificar castelos de Lego em nossa infância (bem, me perdoem os adultos que ainda brincam de Lego!).

Esses genes, chamados por Knight e Endy de ‘tijolos biológicos’ ( bio-bricks , em inglês), seriam relacionados à geração de compostos de interesse biotecnológico que hoje são de produção difícil ou cara. São genes, por exemplo, que geram proteínas capazes de detectar ou inativar poluentes, produzir medicamentos ou hormônios mais baratos ou até indicar a presença de tumores.

Modelo da molécula de DNA construído em Lego pelo Experimentarium Science Center, em Copenhagen (Dinamarca), em homenagem aos 50 anos de decifração da estrutura dessa molécula (1953-2003). (Fonte: http//www.ncbe.reading.ac.uk/DNA50lego.html)

 

Apesar de ser interessante do ponto de vista teórico, esse novo ramo da ciência, denominado por seus criadores ‘biologia sintética’, depende da definição de quais genes são necessários para a sobrevivência e multiplicação das bactérias que serão usadas como receptáculos para os tijolos biológicos. Esses genes essenciais não podem ter seu funcionamento perturbado sob pena de o organismo a ser criado tornar-se inviável. Além disso, toda a complexidade genômica da bactéria usada como hospedeira para a introdução dos tijolos biológicos tem que ser considerada e compreendida, para que se obtenha um resultado positivo.

 

Dessa forma, até o momento, Knight, Endy e seus adeptos têm sido vistos como um grupo de teóricos visionários responsáveis pelo lançamento das bases de algo que representará no futuro grandes avanços para a humanidade. Por outra parte do público, são considerados uns caras meio malucos ou que querem se promover às custas de factóides.

 

Primeiros passos

 

Porém, dois artigos publicados nos últimos anos podem representar um ‘pontapé inicial’ para a biologia sintética. Em um pequeno artigo publicado na última sexta-feira (13 de outubro) na revista Science, um grupo de pesquisadores liderados por Atshushi Nakabachi, do Instituto Riken (Japão), seqüenciou o genoma de Carsonella ruddii

, uma bactéria que habita o interior das células de insetos sugadores de seiva conhecidos como pulgões. A equipe de Nakabachi demonstrou que essa bactéria tem somente 182 genes distribuídos em um genoma com apenas cerca de 160 mil pares de bases de DNA. Esse número de genes é insuficiente para a manutenção de todas as funções vitais dessa bactéria e o DNA das células hospedeiras dos pulgões parece fornecer alguma ajuda para a sobrevivência desse microrganismo. Dessa forma, a equipe de Nakabachi teria encontrado um exemplo do início da evolução da cooperação entre duas células com benefício mútuo para ambas (endossimbiose), fenômeno similar ao observado entre nossas células e as mitocôndrias.

 

Anteriormente, o menor genoma conhecido entre as bactérias pertencia a outra endossimbionte de pulgões, conhecida como Buchnera aphidicola

, que tem 362 genes distribuídos em um genoma com 420 mil pares de base de DNA. As análises realizadas indicaram que essa bactéria também não atinge o limite mínimo de genes necessários para se auto-sustentar e que, se não for ‘adotada’ por células hospedeiras, poderá se extinguir. Novas pesquisas envolvendo algumas das várias outras bactérias endossimbiontes de células de insetos poderão indicar qual será o formato mínimo do genoma que permita a existência de um microrganismo como esse.

 

Dessa forma, os estudos da evolução da endossimbiose entre células de insetos e bactérias poderão gerar no futuro informações que permitam que Knight, Endy e seus associados sejam realmente vistos como fundadores de uma revolução científica. 

 

 

Jerry Carvalho Borges

Colunista da CH On-line

20/10/2006