Que memória guardamos dos anos 1950, se os vivemos? Se nascemos depois disso, que imagem nos foi transmitida desse período? Basicamente a imagem de um período de pujança, crescimento e otimismo.
Recém-saídos dos horrores e privações da Segunda Guerra, agora todos queriam consumir, e o crescimento foi notável, no mesmo ritmo da reconstrução de tudo o que havia sido destruído. Carros enormes, grandes obras de infraestrutura, fast-foods… Impunha-se o estilo de vida dos vencedores como modelo a ser seguido em escala global.
Esse modelo é baseado em uma economia linear de extração, transformação, uso e descarte, movida a carbono fóssil de carvão, petróleo e gás, e muito marketing e lobby. É de essência autoritária e tecnocrática, acredita que podemos tudo, que há solução de engenharia para todos os problemas e que o engenho humano, como a cavalaria dos filmes, sempre chegará a tempo com uma solução salvadora.
Ter uma mente dos anos 50 é ser ingênuo e arrogante ao mesmo tempo e acreditar que fumar não dá câncer, que tudo se resolve com um bom plano quinquenal e que os mercados são bonzinhos e se autorregulam.
Tudo mudou, nada mudou
Num corte rápido para a atualidade, o choque é inevitável. Tudo mudou, mas nada mudou. A economia continua linear, a população se multiplicou, e o motor ainda é o carvão, o petróleo e o gás. Os níveis atuais de consumo e desperdício só seriam sustentáveis com dois ou três planetas Terra, que não têm data prevista de lançamento. Deixe seu e-mail e avisaremos quando o produto estiver disponível.
Apesar de todos os avisos que grupos como o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) têm divulgado há anos, as emissões de carbono fóssil só aumentam, e o aquecimento médio da Terra em mais de 2 ºC já é considerado inevitável.
Para tentar frear uma catástrofe dolorosa, as recomendações são quase óbvias. Entre muitas outras, reduzir o consumo e as emissões de carbono, o desperdício, o crescimento populacional e a desigualdade; aumentar a eficiência, o investimento em transporte público, a governança, o uso de energias menos sujas.
Não sei se perdi alguma coisa, mas no planeta onde moro a adoção dessas recomendações tem sido tão lenta e gradual quanto a abertura política no Brasil dos anos 1970-1980.
Rodízio e ‘apaguinho’
E o que vemos no Brasil de hoje? O fantasma do colapso da economia, devido à seca, a reservatórios à mingua, à geração de energia termoelétrica, mais cara e poluente. A grande discussão é sobre quando e quanto a conta de luz vai aumentar e sobre quando terá início o racionamento de água. Lamento, mas é totalmente esquizofrênico: o racionamento de água já existe, e se chama rodízio; o de luz também, e se chama ‘apaguinho’.
Chegamos ao fim de um verão tórrido e muito, muito seco, com reservatórios quase vazios, e agora terá início uma longa seca. Não precisa ser vidente para concluir que 2014 vai ser um ano bastante difícil, a menos que a seca tenha o bom gosto de ser tão atípica quanto o período chuvoso sem chuvas e nos devolva, se possível, em suaves prestações, toda a água que o verão ingrato nos negou.
Caso contrário, pecuária, agricultura, indústria e geração de energia vão levar um baque, e é melhor não pensar muito nas metas relativas ao inventário de emissões e ao controle da inflação, sem falar em todos os outros efeitos que deixo o leitor livre para imaginar, depois de tirar as crianças da sala.
Mas não se empolgue. Os climatologistas suspeitam que neste ano vamos ter um El Niño bem crescidinho – e ultimamente esses caras só têm dado bola dentro, exceto quando são otimistas.
Eles dizem, por exemplo, que o frio polar do último inverno na América do Norte está relacionado com emissões de poluentes na Índia, China e outros países longínquos. Isso é que é globalização: exporta-se poluição e colhem-se extremos climáticos.
Civilizações com um mínimo de autoestima resistem a um ou dois anos de clima atípico, mas não a uma sequência contínua deles. O problema é que conseguimos alterar o clima a tal ponto, que a biosfera é agora uma fábrica de anos de clima atípico, e nunca no bom sentido.
Um mapa de arrepiar
Se o leitor já tirou as crianças da sala, pode consultar o mapa da vulnerabilidade terrestre às mudanças climáticas produzido pelo IPCC. É de arrepiar. Em vermelho escuro estão toda a África do Saara para baixo e a área costeira que gera o PIB da África do Norte. Na América do Norte, idem para a Louisiana e o sul da Flórida; laranja para boa parte da costa leste. E, para quase todo o México, a América Central, Cuba e uma faixa que pega o Peru, a Bolívia, o Paraguai e as áreas economicamente mais importantes do Brasil, idem. Além do sudeste Asiático quase todo, da Índia e do Paquistão, e de boa parte da China.
Os efeitos serão bem menores no resto do mundo, isto é, a maior parte dos Estados Unidos, da Europa, da Rússia e do leste europeu. Veja que perversidade: os maiores consumidores e emissores de carbono – maiores responsáveis, portanto, pela desregulação do clima – pagarão a conta mais leve. Ah, talvez não, pois não falei das hordas de refugiados que esses países tentarão manter fora de suas vastas fronteiras. Eu avisei que era para tirar as crianças da sala…
Evitar a concretização desse futuro à Blade runner talvez já não seja possível. Mas, se mesmo assim tentarmos revertê-lo, a tarefa será hercúlea e global – e já estamos muito, muito atrasados para começar a realizá-la.
Enquanto isso, alguns países continuam achando natural usar chuveiro elétrico para o banho depois de um dia de cozimento ao sol dos trópicos, exultam por ter achado petróleo 7 km abaixo do nível do mar e ainda estão pensando se vão ou não iniciar uma campanha de racionalização do uso de água e energia. Isso é típico dos anos 1950.
Com essa mentalidade e esse repertório, vai ser difícil evitar as previsões de James Lovelock, mencionadas na coluna anterior. E, com nossos atuais sistemas de representação, esse modelo não mudará tão cedo, qualquer que seja o seu voto nas próximas eleições.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro