Grandes cientistas, homens perigosos?

Um século e meio antes das polêmicas declarações de James Watson, o alemão Ernst Haeckel postulou a suposta superioridade intelectual dos europeus.

A revista Time, uma das mais influentes publicações do mundo, surpreendeu ao escolher quinze grandes cientistas como “homens do ano” de 1960, em vez de homenagear um indivíduo apenas, como de costume (o fascículo, publicado em 2 de janeiro de 1961, pode ser acessado aqui ). Entre os selecionados estava William Shockley (1910-1989), inventor do transistor, pioneiro do “Vale do Silício” na Califórnia e ganhador do Nobel de Física de 1956. Em 29 de março de 1999, quando a mesma revista publicou reportagem de capa sobre “as 100 grandes mentes do século 20” (acesse aqui ), Shockley foi novamente homenageado.

Apesar de seu exaltado prestígio científico, Shockley provavelmente é mais lembrado hoje por suas lamentáveis idéias racistas e discriminatórias do que pela sua ciência. Ele foi um proponente vocal da inferioridade intelectual dos negros em relação aos brancos e chegou a argumentar que o governo americano deveria pagar indivíduos com QI inferior a 100 para que eles se submetessem a uma esterilização.

No mês passado, o biólogo americano James Watson (1928-), descobridor da estrutura do DNA e laureado com o Nobel de Medicina em 1962, cometeu erro semelhante ao desastradamente afirmar que africanos eram menos inteligentes que outros povos e que quem tivera empregados negros sabia disso. Essas declarações estapafúrdias estão na contramão de tudo que a genética tem demonstrado, ou seja, que raças humanas não existem do ponto de vista científico. Em artigo a ser publicado no número de novembro de 2007 da revista Pesquisa Fapesp, tive oportunidade de tecer comentários detalhados sobre a indesculpável gafe racista de Watson.

O ponto que quero enfatizar aqui é que grandes pesquisadores que são preconceituosos podem ser muito pouco científicos ao abordar tópicos sociais. A situação é ainda pior quando eles possuem um viés subjetivo que influencia o próprio trabalho científico e conduz a conclusões sociais espúrias e calamitosas. O melhor exemplo que conheço dessa síndrome é o caso do evolucionista alemão Ernst Haeckel, que abordarei abaixo.

Haeckel

Exemplar da biblioteca do colunista de A história da criação dos seres vivos de Ernst Haeckel. O fato de que a tradução francesa do livro já estivesse em sua terceira edição em 1884 demonstra o enorme sucesso do mesmo em toda a Europa (clique na imagem para ampliá-la).

Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (1834 -1919) foi um eminente biólogo, naturalista, médico, artista e filósofo na Alemanha do século 19. Ele descreveu e nomeou milhares de novas espécies e criou muitos dos termos ainda usados em biologia, incluindo filogenia, ecologia e protista.

Haeckel encantou-se com as idéias de Darwin e foi o grande promotor e propagandista da teoria da evolução por seleção natural no mundo germânico. Seus estudos embriológicos detalhados o levaram à observação de que era mais fácil estudar relações evolucionárias em embriões do que em adultos. Nesse sentido, ele foi um dos precursores da biologia do desenvolvimento evolucionária, mais conhecida pela abreviação “Evo-Devo”.

Com base em suas pesquisas comparativas, Haeckel desenvolveu a chamada “teoria da recapitulação”, ou seja, a proposição – hoje desacreditada – de que, durante o desenvolvimento, os embriões “recapitulam” etapas da evolução animal. Assim, no desenvolvimento intra-uterino humano haveria progressivamente um estágio “peixe”, um estágio “ave” etc. Essa teoria, que se tornou extremamente popular na época e que ainda hoje é ensinada em alguns textos desatualizados de biologia, foi resumida por Haeckel com o slogan “a ontogenia recapitula a filogenia”.

Cientificamente, Haeckel foi uma figura de enorme influência em seu tempo. Darwin, referindo-se a ele, escreveu em 1871, no prefácio do The descent of man [A descendência do homem]: “…Este naturalista, além da sua grande obra, Generelle Morphologie (1866), recentemente (1868) publicou Naturliche Schöpfungsgeschichte, em que ele discute a genealogia do homem. Se esse trabalho tivesse aparecido antes da escrita do meu ensaio, eu talvez jamais o tivesse completado. Quase todas as conclusões a que cheguei estão confirmadas por esse naturalista, cujo conhecimento em vários pontos é mais completo do que o meu”.

Anêmonas marinhas pintadas por Haeckel para seu livro de 1904 Kunstformen der Natur [Formas de arte da natureza]. Haeckel influenciou fortemente a Jugendstil (como era chamada a art nouveau na Alemanha) e suas belíssimas ilustrações foram amplamente usadas como inspiração em jóias e luminárias na Europa (clique na imagem para ampliá-la).

Heackel também era um exímio artista. Seus belíssimos desenhos biológicos, muitos dos quais foram reunidos no livro de 1904 Kunstformen der Natur [Formas de arte da natureza], tiveram uma forte influência sobre a art nouveau na Europa. Essa escola artística, cujo nome pode ser literalmente traduzido como “arte nova”, era caracterizada por arabescos e formas curvilíneas de inspiração orgânica. O portão de entrada da Exposição Mundial de 1900 em Paris, projetado por René Binet, foi baseado nos desenhos feitos por Haeckel de radiolários, que são belos animais unicelulares marinhos.

A outra face da moeda
Tendo obtido essa enorme importância científica e influências intelectual e artística, Haeckel, como Darth Vader em Guerra nas estrelas, se deixou seduzir pelo “lado escuro da força”. Hoje sabemos que ele fraudou as imagens de embriões para maximizar as semelhanças entre as diferentes espécies. Ele também modificava as formas dos seres vivos que descrevia, para adequá-los aos seus princípios artísticos.

Mais problemáticas ainda foram suas idéias a respeito da humanidade, que ele dividiu em 12 espécies diferentes, ordenando-as em uma escala de valor, na qual, como esperado, a “espécie” européia era a superior. Adicionalmente, encantado com o “darwinismo social” de Herbert Spencer (ver aqui coluna anterior a esse respeito), tornou-se um dos líderes do movimento Völkisch, que foi muito importante na Alemanha do século 19 e defendia idéias ultranacionalistas, xenofóbicas e anti-semitas.

Paralelamente, Haeckel desenvolveu o monismo, uma filosofia segundo a qual política, economia e ética nada mais são do que biologia aplicada. Esses conceitos atraíram um jovem austríaco que fez notória carreira política colocando-os em prática. Seu nome era Adolf Hitler. Em 2004, o historiador americano Daniel Gasman, em seu livro chamado As origens científicas do Nacional Socialismo, destacou Ernst Haeckel como influência principal.

O impacto de Haeckel pode ser percebido também em outro livro muito interessante intitulado A recepção do darwinismo no Brasil, organizado por Heloisa Maria Bertol Rodrigues, Magali Romero Sá e Thomas Glick e publicado pela Fiocruz. No texto fica evidente que talvez os conceitos evolucionistas tenham aportado aqui mais através de Haeckel do que do próprio Darwin. Não é surpresa então que a perversa filosofia de Haeckel tenha influenciado muitos na terra brasilis, mais famosamente Tobias Barreto e outros componentes da chamada Escola do Recife, que incluía Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Capistrano de Abreu, Graça Aranha et alii.

Desenho de embriões feito por Haeckel, fraudado para enfatizar as semelhança entre espécies diferentes. Desenhos como este foram usados como base para a “teoria da recapitulação”, totalmente rejeitada pela biologia moderna. Embora humanos compartilhem ancestrais com peixes, répteis e outros mamíferos, os embriões humanos não são homólogos de adultos desses ancestrais (clique na imagem para ampliá-la).

Não tenho conhecimentos profundos da história intelectual e política do nosso país do século 19. Entretanto, não é necessário uma imaginação demasiadamente fértil para inferir que a filosofia de Haeckel deve ter influenciado várias políticas do fim do Império e início da República, nutrindo o descaso pelos ameríndios e a admiração do mundo europeu e desembocando no programa de “branqueamento” do Brasil.

Argumentum ad verecundiam
Falácias são enunciados ou raciocínios falsos que, entretanto, simulam a veracidade. Elas são o equivalente intelectual de lobos em pele de cordeiros. Uma falácia insidiosa é o chamado Argumentum ad verecundiam ou “apelo à autoridade”. A falácia consiste em acreditar na verdade de uma proposição simplesmente porque foi feita por uma pessoa respeitada e de grande renome.

Os casos que examinamos nesta coluna demonstram de maneira contundente o perigo de aceitar opiniões sociais e pontos de vista filosóficos de pessoas que adquiriram prestígio e autoridade através da ciência.

Vale sempre a pena ter em mente as palavras do poeta romano Horácio (65 a.C.–8 a.C.) em suas Epístolas: Nullius addictus iurare in verba magistri [Nenhum mestre tem o direito de pedir que eu cegamente lhe jure obediência]. Este notável verso foi resumido em 1660 para o moto da Royal Society da Inglaterra: Nullius in verba [“na palavra de ninguém”].


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
09/11/2007