Guerra e paz no mundo da eletricidade

A coluna do mês passado terminou com um suspense a respeito de ações inescrupulosas na disputa sobre o tipo de fonte de alimentação usado nos sistemas de iluminação elétrica. De um lado, estava Thomas Alva Edison (1847-1931) e seu gerador de corrente contínua; de outro, Nikola Tesla (1856-1943) e George Westinghouse (1846-1914), defensores dos motores de corrente alternada, invenção que acabou solucionando o problema da necessidade do uso de várias fontes de alimentação para suprir o sistema de iluminação de uma cidade inteira.

De fato, para desqualificar o uso de corrente alternada, Edison e seus auxiliares protagonizaram cenas de extremo mau gosto, como eletrocutar animais em público para mostrar o perigo desse tipo de gerador. Mas as questões científicas envolvidas nessa disputa, que entrou para a história como guerra ou batalha das correntes, têm mais a nos ensinar do que as baixarias dos defensores da corrente contínua.

Para desqualificar o uso de corrente alternada, Edison e seus auxiliares protagonizaram cenas de extremo mau gosto

Basta citar, por exemplo, que uma reviravolta tecnológica colocou a corrente contínua à frente da alternada quando se trata de transmissão em longas distâncias, embora a corrente alternada continue insuperável no que diz respeito à geração e ao consumo de energia. É essa a história de hoje.

Para começo de conversa, deve-se dizer que existem muitas diferenças entre sistemas baseados em corrente contínua e corrente alternada, mas duas leis fundamentais são igualmente obedecidas por ambos. A primeira é que a potência transmitida (quantidade de energia fornecida em determinado intervalo de tempo) é proporcional ao produto da voltagem (responsável pela movimentação dos elétrons) pela corrente elétrica.

A outra lei é que uma parte da potência transmitida é dissipada na forma de calor, por causa da resistência do fio condutor. A potência dissipada é igual ao produto da resistência pelo quadrado da corrente. Embora essas leis sejam as mesmas para corrente contínua e alternada, seus resultados são diferentes em um e outro caso. E são essas diferenças que determinam as escolhas de um ou outro sistema de transmissão de corrente elétrica.

Fonte de corrente contínua
Fonte de alimentação de corrente contínua de um gerador de usina hidrelétrica. (foto: David Gubler/ Wikimedia Commons)

Para aumentar a potência de transmissão e diminuir sua dissipação, deve-se aumentar a voltagem, mas voltagem alta não pode ser usada nos sistemas de iluminação, por questões de segurança. Pode-se ainda aumentar a potência com o aumento da corrente, mas isso também provocará maior desperdício de energia pelo efeito da dissipação na forma de calor. É como o ditado: “Se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come”. Ou como diz o samba de Aldir Blanc: “O que dá pra rir, dá pra chorar”.

Edison enfrentou esse dilema, mas não podia usar a solução óbvia, ou seja, transportar corrente em alta voltagem e fornecê-la em baixa voltagem aos consumidores. Isso não era possível com corrente contínua, e essa era a razão pela qual o gerador, nesse caso, tinha que estar próximo dos consumidores.

A vantagem parcial de Tesla

A vantagem da corrente alternada em relação a essa questão ficou clara logo após a invenção de Tesla. O princípio da indução eletromagnética, que está na base da tecnologia da corrente alternada, possibilita facilmente aumento e diminuição de voltagem. Mas, de novo, o que dá pra rir, dá pra chorar.

A base da tecnologia da corrente alternada possibilita facilmente aumento e diminuição de voltagem

A corrente elétrica produz campos elétricos e magnéticos. Corrente elétrica alternada produz campos alternados. Campo magnético alternado produz um efeito em condutores que limita a eficiência da transmissão. Trata-se do famoso efeito superficial. O fenômeno é complicado demais para detalharmos aqui, mas o essencial pode ser compreendido.

Ao contrário da corrente contínua, a corrente alternada não se distribui homogeneamente no fio condutor. Ela prefere circular na região próxima à superfície, ou na ‘pele’ do condutor.

A espessura da região onde a corrente alternada circula depende da frequência da corrente. Por exemplo, para correntes de 60 Hertz, frequência usada no Brasil, a espessura usada na transmissão em um fio de cobre é de aproximadamente 8,5 mm. Esse baixo valor faz com que a resistência efetiva do condutor seja muito grande, resultando no desperdício de energia sob a forma de calor. Como resolver esse dilema então?

Solução pacificadora

A solução começou a ser viabilizada no início do século passado, com a invenção do retificador de vapor de mercúrio, cujas potencialidades tecnológicas em sistemas de transmissão de corrente elétrica só começaram a ser percebidas nos anos 1920. No entanto, quando a tecnologia de retificadores a vapor ficou madura, no início dos anos 1950, já estava surgindo um retificador de estado sólido, à base de silício, o ainda hoje famoso e mais eficiente tiristor.

Esses retificadores são tecnologias bem diferentes, mas, em linhas gerais, os princípios de funcionamento são os mesmos. Ambos os dispositivos são capazes de converter corrente alternada em contínua e vice-versa. Era o que faltava para a montagem de um sistema de transmissão próximo do ideal.

Esse sistema, cuja primeira instalação comercial se deu em 1954, na Suécia, é conhecido simplesmente como corrente contínua em alta tensão (HVDC, na sigla em inglês). Na verdade, trata-se de um sistema misto, onde a produção e o consumo da corrente se dão pela tecnologia de corrente alternada e a transmissão é feita com corrente contínua em alta tensão.

Hidrelétrica de Itaipu
Hidrelétrica de Itaipu, onde está instalado um sistema misto de geração e transmissão de energia, baseado no uso de corrente contínua e alternada. (foto: Felipe Stahlhoefer/ Wikimedia Commons)

Essa tecnologia mista veio para resolver uma série de dificuldades que a corrente contínua e a alternada enfrentavam isoladamente sem qualquer possibilidade de sucesso. Além das dificuldades já mencionadas, podemos acrescentar outra importantíssima, que era a impossibilidade de conectar redes elétricas que operavam em frequências diferentes, como a do Brasil, que opera em 60 Hertz, e a da Argentina, em 50 Hertz. Isso não seria possível sem o uso da transmissão por corrente contínua, que permite ainda fazer conexões com comprimento superior a 800 km.

Além da superação dessas dificuldades antes insuperáveis, a tecnologia HVDC trouxe uma série de vantagens em relação ao sistema inteiramente de corrente alternada. Por exemplo, para uma linha de 1.500 quilômetros, o sistema HVDC perde menos de 8% da sua potência, enquanto o sistema de corrente alternada pode perder até 25%.

Em 1984, a hidrelétrica Itaipu Binacional bateu o recorde mundial de voltagem na transmissão de energia elétrica ao instalar um sistema HVDC de 600 mil volts, que permitiu aumentar a potência transmitida e a extensão das linhas que transportam a energia. Ainda hoje, a linha de transmissão de corrente contínua da Itaipu é a maior do mundo, com 6.300 megawatts transmitidos ao longo de 800 quilômetros.

Atualmente, mais de 145 projetos HVDC encontram-se em andamento em todo o mundo. Nem Edison, nem Tesla viveram o suficiente para ver o final feliz da união de suas invenções.

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana