Em nossa coluna de novembro, vimos como as nanopartículas estão sendo usadas para promover a hipertermia – a elevação da temperatura com o intuito de eliminar células cancerosas. A complexidade de alguns dos fundamentos científicos que estão por trás da hipertermia e o modo ambíguo como eles são por vezes tratados na literatura, justificam que voltemos ao tema para uma discussão mais detalhada.
Os pesquisadores que se dedicam a esse assunto nos ensinam que a forma mais eficiente para se obter calor com o uso de partículas magnéticas é pela liberação de energia em processos de histerese, um fenômeno exibido por materiais ferromagnéticos. Mas o que é um processo de histerese e como ele induz a liberação de energia?
O esquema acima mostra como a magnetização de um material magnético varia em função da intensidade do campo magnético aplicado sobre ele (adaptado de Hyper Physics).
Vamos discutir isso a partir da figura acima, apresentada por Marcelo Knobel em seu artigo sobre aplicações do magnetismo publicado na CH 215. Os retângulos com as pequenas setas sugerem a existência de domínios magnéticos no material. Na verdade, as setas representam os momentos magnéticos, algo como ímãs microscópicos responsáveis pela magnetização do material. No estado desmagnetizado, os momentos magnéticos dos domínios apontam aleatoriamente em todas as direções. É por isso que nesse estado a magnetização total é nula.
A situação muda se o material for colocado em uma região na qual existe um campo magnético. À medida que a intensidade do campo magnético H aumenta, os momentos magnéticos tendem a seguir a orientação do campo externo, da mesma maneira como a agulha de uma bússola segue a orientação do campo magnético terrestre. Os momentos magnéticos que apontam no sentido do campo externo produzem a magnetização do material, que cresce até certo limite, conhecido como magnetização de saturação. Este é um processo que exige energia: gastamos energia ao usar o campo externo H para orientar os momentos magnéticos dos domínios.
A curva tracejada representa a evolução do material quando ele parte do estado desmagnetizado, ou seja, na primeira vez em que foi submetido ao campo magnético externo. Se o campo for retirado, o material não retorna imediatamente à condição inicial, na qual a magnetização é nula. Quando o campo externo é nulo, o material ainda exibe uma magnetização, denominada magnetização remanente.
Para levar o material ao estado de magnetização nula, é necessário inverter o campo externo e aumentar sua intensidade até um valor conhecido como campo coercivo ou coercividade. Note que a magnetização atinge o valor nulo depois que o campo externo passa por esse valor. Foi motivado por esse atraso da magnetização em relação ao campo externo que o fenômeno recebeu a denominação de histerese, que em grego significa atraso.
Devolução ou perda?
A existência da magnetização remanente implica que uma parte dos momentos magnéticos permanece orientada. Ou seja, no retorno rumo à magnetização nula, o material não devolve imediatamente toda a energia que gastamos no processo inicial. Parte dessa energia fica temporariamente armazenada e será devolvida após um breve intervalo. Quer seja imediatamente ou após algum tempo, a energia devolvida – ou perdida, conforme o ponto de vista – aparece sob a forma de calor, cuja quantidade é proporcional à área englobada pelo ciclo de histerese, que corresponde ao ciclo fechado na figura acima.
Os engenheiros que fabricam dispositivos com materiais magnéticos consideram-na uma perda e investem muito tempo de pesquisa para minimizá-la. Já para os médicos que se ocupam da cura do câncer por meio da hipertermia magnética, a energia é considerada uma devolução. Ou seja, os engenheiros eletrônicos choram as perdas de energia por causa da histerese magnética, enquanto os médicos oncologistas alegram-se com os ganhos de energia decorrentes do mesmo fenômeno.
O percurso de volta depende do material e do modo como o campo externo varia, mas o aspecto geral é este apresentado na primeira figura que ilustra este artigo. Alguns materiais apresentam ciclo de histerese mais aberto ou mais fechado, mais retangular ou mais inclinado. Para um mesmo material, o formato do ciclo pode variar dependendo do tamanho e do formato das partículas. De qualquer forma, o essencial para o uso em hipertermia é se ter em conta que a energia liberada é proporcional à área englobada pelo ciclo de histerese.
A figura mostra três amostras de partículas de magnetita com diferentes formatos e tamanhos. O detalhe no canto superior esquerdo das imagens mostra o ciclo de histerese de cada amostra.
Na ilustração ao lado, são apresentadas partículas de magnetita (Fe 3 O 4 ) com diferentes formatos e tamanhos, e os respectivos ciclos de histerese. Como a energia liberada é proporcional à área do ciclo de histerese, é razoável imaginar que os materiais mais apropriados para hipertermia são aqueles que apresentam o ciclo mais largo possível, mas a questão não é tão simples assim.
Um ciclo largo implica um grande campo coercivo, e isso é um problema, pois existem limites de tolerância do corpo humano a campos magnéticos oscilantes. São aceitáveis valores inferiores a 15 quiloamperes por metro para a intensidade do campo, e a 1,2 megahertz para a freqüência. Essa intensidade é 500 vezes maior que a utilizada em exames de ressonância magnética, e a freqüência encontra-se na faixa das freqüências geradas nas telas de computador.
Liberação de energia
A questão agora é: como isso funciona no caso da hipertermia? Em outras palavras, que mecanismo proporciona a liberação de energia? Em metais, uma corrente elétrica é induzida quando o material é imerso em uma região com um campo magnético oscilante. A quantidade de corrente é proporcional ao campo magnético e ao volume das partículas, e essa corrente provoca a dissipação de calor. No entanto, esse mecanismo produz uma elevação de temperatura praticamente desprezível para as necessidades da hipertermia.
Alguns materiais, como as nanopartículas magnéticas encapsuladas em polistireno retratadas acima, não apresentam ciclo de histerese, como atesta o gráfico no canto superior esquerdo (adaptado de www.microparticles.de).
Já o mecanismo que envolve a rotação dos domínios magnéticos é capaz de elevar a temperatura local a valores aceitáveis. Veja que, para o fechamento do ciclo de histerese, os momentos magnéticos dos domínios passam de um sentido para o sentido oposto e depois voltam ao sentido original. Nesse processo, a energia é liberada por causa do atrito entre as partículas e o meio circundante. Para a obtenção de uma transferência de calor suficiente, é necessário que o ciclo de histerese seja repetido várias vezes. Isso é feito com a aplicação de um campo magnético alternado, que oscila a uma dada freqüência.
Nem sempre a hipertermia é obtida com a liberação de energia na histerese magnética. Na hipertermia com ferrofluido, por exemplo, a liberação de calor vem da rotação das partículas superparamagnéticas, que não apresentam o fenômeno da histerese. Como ilustra a figura ao lado, a curva de magnetização é completamente reversível, ou seja, o sistema vai e volta pelo mesmo caminho magnético.
Como vimos acima, a histerese surge quando o sistema vai por um caminho e volta por outro. O curioso é que os mecanismos de transferência de energia são basicamente idênticos em ambos os casos. A diferença é que, nos materiais ferromagnéticos, cada partícula possui inúmeros domínios, e estes giram ao longo do processo de magnetização e desmagnetização, enquanto nos materiais superparamagnéticos, cada partícula é um domínio, que também gira ao longo do processo magnetização-desmagnetização.
Casos clínicos
Tratamento pioneiro de câncer de próstata com o uso de hipertermia através de nanopartículas em suspensão aquosa (foto: International Journal of Hyperthermia).
Embora a pesquisa básica e os processos de preparação de materiais magnéticos estejam bastante avançados, mesmo na escala nanométrica, a transferência desse conhecimento para procedimentos clínicos em seres humanos ainda oferece desafios consideráveis. Continuam em aberto questões referentes aos tipos de materiais (compostos, formatos e dimensões) mais eficientes, aos limites de tolerância dos seres vivos em relação à intensidade e freqüência do campo magnético e ao melhor procedimento para a inserção das fontes de calor nas proximidades dos tumores.
O tamanho do desafio pode ser avaliado pela escassez de casos clínicos relatados na literatura científica. Em relação ao uso de partículas magnéticas para hipertermia, talvez não haja mais do que meia dúzia de casos clínicos.
O trabalho mais citado na base de dados da Web of Science, cujos resultados foram apresentados em 2005, no International Journal of Hyperthermia, é de um grupo alemão, pioneiro no tratamento de câncer de próstata com o uso de hipertermia através de nanopartículas em suspensão aquosa.
O tratamento foi efetuado com um campo magnético inferior a 18 quiloamperes por metro, oscilando a uma freqüência de 100 quilohertz. Ou seja, o campo é um pouco superior ao limite mencionado acima, mas a freqüência é bem menor. Essa variação de campo e freqüência observada na literatura é também um sinal de que a comunidade científica ainda busca as melhores condições operacionais para o emprego dessa promissora arma contra o câncer.
Carlos Alberto dos Santos
Núcleo de Educação a Distância
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul
28/12/2007