O termo ‘megafauna’ é usado para definir um conjunto de animais que viveram durante o Pleistoceno (há mais de 11 mil anos). São preguiças, tatus, mastodontes e outros mamíferos que tinham uma característica comum: eram todos de grande porte. Seus restos são encontrados em abundância em praticamente todos os países e sempre fascinaram os cientistas por seu tamanho e diversidade.
Entre as questões mais discutidas sobre esses animais está a sua extinção. Uma corrente de pesquisadores defende que as variações climáticas foram um dos fatores que mais influenciaram no seu desaparecimento; outros acreditam que a extinção se deveu à ação humana. Para avaliar a última hipótese, são necessárias evidências diretas da interação dos hominídeos com a megafauna. Mas essas evidências são raras e de difícil comprovação.
Em busca de resposta para perguntas sobre a relação entre hominídeos e elementos da megafauna, o paleontólogo uruguaio Richard Fariña, da Universidade da República, em Montevidéu, e colegas estudaram detalhadamente um depósito no Uruguai formado há 30 mil anos. Para surpresa geral, encontraram indícios de uma das mais antigas interações de hominídeos com a megafauna documentadas até hoje. Os resultados desse trabalho acabam de ser publicados em Proceedings of the Royal Society B.
Arroyo del Vizcaíno
O Arroyo del Vizcaíno é um pequeno rio situado no estado de Canelones, no Uruguai. Durante uma grande seca ocorrida em 1997, seu volume foi bastante reduzido, o que resultou na exposição de alguns ossos em um de seus meandros, nas proximidades do povoado de Sauce.
Desde o início aquele material chamou a atenção. Identificados como restos de gigantes da megafauna, pesquisadores logo se interessaram pelo achado. A possibilidade de estudar um sítio fossilífero praticamente intacto, coletando os fósseis com todo o cuidado, e de estabelecer a posição de cada elemento minuciosamente nas respectivas camadas não é algo que acontece todos os dias. Naquele momento tinha início uma verdadeira luta para a equipe de Fariña.
O primeiro obstáculo foi de natureza burocrática: era preciso obter as devidas autorizações locais para dar início às escavações, sem risco de problemas com as autoridades durante o resgate do material e das informações contidas no depósito.
Depois, outro problema: as condições do tempo. Esse ponto nem sempre está claro para as pessoas: não se pode coletar fósseis a qualquer momento. As chuvas são um dos maiores vilões para uma escavação. No caso do Arroyo del Vizcaíno, havia um empecilho adicional: o sítio fica praticamente ‘dentro’ do rio. Era, portanto, necessário construir um curso alternativo para desviar as águas, o que requer emprego de maquinário pesado e logística própria, dificultando ainda mais a tarefa de extração dos fósseis.
Mas as dificuldades não param por aí. Mesmo depois de desviar o curso do rio, era preciso eliminar a água que mina naturalmente quando a escavação se aprofunda, sobretudo quando o terreno está muito próximo de um rio. Isso foi solucionado, ao menos parcialmente, com o emprego de bombas. Mas sempre fica um pouco de água, que acaba se tornando lamacenta, para ‘alegria’ dos pesquisadores.
Centenas de ossos
Após duas atividades de campo no início de 2011 e de 2012, tanto esforço valeu a pena. No total, foram recuperados 1.145 ossos, dos quais 367 eram placas dérmicas de gliptodontes, animal semelhante ao tatu com tamanho que podia se aproximar do de um fusca. Embora os ossos fossem isolados, foi possível identificar pelo menos 11 espécies distintas.
De longe, o animal mais abundante era a preguiça-gigante Lestodon armatus, representada por pelo menos 17 indivíduos. A grande maioria eram formas adultas; poucas eram de jovens ou adultos em idade avançada. Esse tipo de configuração não sugere que os restos tenham se acumulado de forma aleatória ou devido a um evento catastrófico. Ao contrário, com o predomínio de adultos, é possível imaginar que esses animais ali se acumularam devido à atividade de caça por parte de hominídeos. Mas como ter certeza disso?
Tentando responder a essa pergunta, os paleontólogos passaram a examinar a superfície dos ossos em busca de marcas. E, de fato, elas estavam presentes em muitos exemplares. Mas persistia um problema: como saber se aquelas marcas tinham mesmo sido feitas por populações humanas já extintas?
Marcas em ossos podem resultar de diferentes ações. Uma das mais comuns é a marca de transporte, que resulta da movimentação do material do local onde o animal faleceu até onde ele foi depositado. Outro tipo de marca é aquela feita por animais carniceiros com os dentes. Existem ainda as marcas que resultam da própria exposição dos ossos, quando a chuva e o vento alteram sua superfície. E há também aquelas feitas por objetos cortantes usados por hominídeos. Com tantas possibilidades, como fazer a distinção?
Como o leitor pode imaginar, nem sempre é fácil distinguir, e diferentes processos podem produzir marcas similares. Por isso, muitas vezes são necessárias observações adicionais.
As rochas sedimentares no Arroyo del Vizcaíno indicam que o deslocamento dos ossos não foi tão longo, o que reduz a chance de o transporte ter ocasionado a maior parte das marcas. Perfurações feitas com dentes exibem uma estrutura radial, em que parte do osso tende a ser empurrado para dentro, diferente do que foi observado nos ossos do Uruguai. E as marcas causadas pelo intemperismo são bem características: tendem a se estender por toda a superfície óssea, não se restringindo a uma parte específica, ao contrário do que se observou nos fósseis coletados.
A descoberta junto dos fósseis de artefatos líticos que poderiam ter sido empregados no corte e na raspagem da carne dos animais reforçou a interpretação de que os ossos da megafauna recuperada no Arroyo del Vizcaíno ali se acumularam em decorrência da caça praticada por hominídeos.
Mesmo não podendo ser determinante para questões relacionadas com a extinção da megafauna, a descoberta de Fariña e colegas, além de aumentar o número de evidências que se têm de interação entre a megafauna e hominídeos, levanta novos dados sobre a ocupação humana da América do Sul, possivelmente mais antiga do que se imagina.
Esse exemplo do Arroyo del Vizcaíno revela uma história de esforço que teve um final feliz. Mas nunca é demais enfatizar que esse tipo de trabalho, envolvendo tantas variáveis logísticas, não necessariamente garante a obtenção de resultados positivos.
Às vezes chove torrencialmente, destruindo toda a infraestrutura, o que já aconteceu com muitos paleontólogos. Ou o campo é invadido por animais e até mesmo por pessoas do local, que acabam destruindo muitos fósseis. E, mesmo que dê tudo certo, pode haver situações em que, do ponto de vista científico, nada de muito importante seja encontrado. Não seria nada de tão incomum, já que estes são os “ossos do ofício”…
Aproveito para desejar Boas Festas aos leitores desta coluna.
Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
Paleocurtas
As últimas do mundo da paleontologia
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Por falar em hominídeos, pesquisadores acabam de sequenciar um genoma quase completo de fósseis com mais de 300 mil anos. Os restos foram encontrados na caverna Sima de los Huesos, no norte da Espanha, e são atribuídos ao Homo heidelbergensis. Coordenado por Matthias Meyer, do Instituto Max Plank, em Leipzig, Alemanha, o estudo foi publicado com destaque na revista Nature e é considerado um grande progresso na pesquisa de DNA em hominídeos.
Acaba de ser publicado um importante livro sobre meteoritos. Coordenado por Elisabeth Zucolotto, do Museu Nacional/UFRJ, a obra Decifrando os meteoritos, financiada pela Faperj, apresenta detalhadamente desde a identificação dos principais tipos de meteoritos até o que um leigo deve saber para reconhecer um desses fragmentos do Sistema Solar que caem no nosso planeta. Mais informações com a autora.
Ainda sobre livros, acaba de ser lançada na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, no Rio de Janeiro, a obra Tecnologias 3D – Desvendando o passado, modelando o futuro. Coordenada por Jorge Lopes, do Instituto Nacional de Tecnologia, a publicação apresenta estudos de fósseis e até de múmias, entre outros materiais, realizados com o auxílio de tomografia computadorizada. No lançamento o egiptólogo Antônio Brancaglion Junior, do Museu Nacional/UFRJ, proferiu palestra sobre múmias.
Camila Bernardes, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), e colegas acabam de publicar na Acta Palaeontologia Polonica uma nova reconstrução da região anterior do crânio de equídeos extintos. Comparando formas atuais e extintas, a equipe pôde determinar que hippidiformes fósseis possuíam o lábio superior preênsil, o que significa que podiam segurar folhas de árvores e arbustos, diferenciando-se, ao menos em parte, de formas como, por exemplo, Eqqus na atividade de pastagem.
Richard Butler, da Universidade Ludwig-Maximilians, em Munique, Alemanha, e colegas realizaram estudo sobre como a coleta seletiva e a presença de depósitos com grande potencial de preservação de fósseis podem influenciar a diversidade. Utilizando pterossauros como modelo, os pesquisadores concluíram que, mesmo reconhecendo certa tendência de se encontrar fósseis desses répteis alados em depósitos do Cretáceo, houve maior diversidade do grupo a partir do Jurássico. A pesquisa foi publicada em Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology.
A revista Palaeontology acaba de publicar um estudo detalhado sobre a estrutura dos olhos dos trilobitas, que formam um grupo de artrópodes extintos muito comuns na Era Paleozoica. Clare Torney, da Universidade de Glasgow, Escócia, e colegas chegaram à conclusão de que a evolução do sistema de visão do grupo dos Phacopidae é mais complexa do que se supunha.
Uma triste notícia recebida no fechamento desta coluna: faleceu no dia 16 de dezembro o paleontólogo Mario Costa Barberena, um dos principais pesquisadores de vertebrados triássicos do Brasil. Barberena atuou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tendo orientado inúmeros alunos no tema até 2000, quando se afastou de suas atividades por motivos de saúde. Ele foi membro titular da Academia Brasileira de Ciências e participou de diversos comitês e comissões científicas, tendo contribuído de modo expressivo para o desenvolvimento dos estudos de geociências no nosso país.