Infinitas possibilidades

Descobertas recentes têm lançado luz sobre um dos maiores mistérios do desenvolvimento dos organismos: como uma única célula originada após a fecundação pode gerar mais de duas centenas de tipos celulares distintos? E como, ocasionalmente, essas células podem ser reprogramadas para se tornar novamente indiferenciadas? 

Hemácias, neurônios, fibroblastos e fibras musculares são células inegavelmente distintas. Porém, se analisarmos o material genético de um indivíduo, observaremos que não há diferenças significativas entre essas células. 

A solução para esse dilema parece estar na ativação e desativação dos genes em cada tipo celular durante o desenvolvimento embrionário. A cronologia dessas transformações é bem conhecida. Contudo, apenas recentemente começamos a compreender quais fatores estão envolvidos na diferenciação celular. 

À medida que o embrião se desenvolve, suas células perdem a capacidade de gerar tipos celulares diferentes (pluripotência), tornando-se comprometidas com a formação de um grupo específico de células. Também se sabe que tecidos adultos podem originar apenas células com a sua morfologia típica e que, apesar de existirem células-tronco em alguns desses tecidos, elas têm uma plasticidade bem mais limitada que as células-tronco embrionárias. 

Devido a essa maior plasticidade, as células-tronco embrionárias têm se convertido nos últimos anos emuma das maiores promessas da medicina. Contudo, como essas pesquisas empregam embriões humanos (que tenham permanecido congelados por, pelo menos, três anos ou que sejam considerados inviáveis para implantação uterina), elas são objeto de um intenso debate ético. Portanto, soluções que permitam aproveitar a plasticidade das células-tronco embrionárias sem recorrer aos embriões são muito bem-vindas! 

Fatores de transcrição 
A expressão diferencial de algumas proteínas conhecidas como fatores de transcrição durante o desenvolvimento embrionário tem chamado a atenção dos cientistas. Pesquisas mostraram que algumas dessas proteínas estão envolvidas na diferenciação celular por meio da ativação ou inibição de genes após a sua ligação com regiões específicas do DNA.

Uma dessas proteínas, conhecida como Oct4 (octâmero-4), se expressa nas células no início do desenvolvimento embrionário – depois, a expressão dessa proteína torna-se restrita à região que posteriormente originará o embrião (massa celular interna). Em seguida, a Oct4 é observada apenas no epiblasto posterior, uma região ligada à formação das células germinativas primordiais (precursoras dos espermatozóides e dos óvulos). Após o nascimento, esse fator de transcrição pode ser encontrado apenas nos ovócitos. Intrigantemente, a Oct4 não ocorre nas células germinativas masculinas após o período embrionário. 

Portanto, os níveis de expressão da Oct4 são vitais para a regulação da pluripotência e para as fases iniciais da diferenciação embrionária. Pesquisas indicam que embriões de camundongos deficientes em Oct4 são incapazes de formar a massa celular interna e as estruturas derivadas dessa região. 

Além disso, estudos recentes têm mostrado que teratomas – tumores contendo células indiferenciadas – estão associados à ativação da Oct4 ou à incapacidade do organismo de desativar esse fator de transcrição. Algumas pesquisas também têm sugerido que a Oct4 é essencial para a autorrenovação das células-tronco adultas existentes em diversos locais como o epitélio intestinal, a medula óssea, a retina, o fígado e o cérebro. 

Um estudo publicado em 2000 e realizado por uma equipe dirigida por Hitoshi Niwa, da Universidade de Edimburgo, Escócia, mostrou que a expressão de níveis precisos de Oct4 é essencial para o programa de desenvolvimento embrionário em camundongos. Concentrações elevadas da proteína levam à diferenciação das células nos tecidos embrionários endoderma e mesoderma. Em contraste, a repressão de sua expressão induz à perda da pluripotência. 

Sem restrições éticas 
Após a publicação desses resultados, diversos laboratórios têm tentado induzir células-tronco adultas a se transformar em células embrionárias (as chamadas células-tronco pluripotentes induzidas – ou iPS, na sigla em inglês) utilizando, para isso, um coquetel de fatores de transcrição. 

Como as células-tronco embrionárias genuínas, as células iPS são capazes de gerar, após estímulo adequado, qualquer tecido do corpo de um indivíduo adulto. Além disso, como elas não são provenientes de embriões, não sofrem as restrições éticas ligadas às pesquisas com células-tronco embrionárias. 

No futuro, as iPS podem ser valiosas para o estudo de doenças até hoje incuráveis. Além disso, a associação da produção de iPS com técnicas de transferência nuclear pode gerar células geneticamente idênticas às células do doador e que, por isso, não correm risco de sofrer rejeição após seu transplante. 

As primeiras células iPS foram criadas em 2006 pela equipe de Shinya Yamanaka da Universidade de Quioto, Japão. Para isso, esses pesquisadores isolaram fatores de transcrição (Oct4, Sox2, c-Myc e Kfl4) de células embrionárias e, utilizando retrovírus como vetores, os introduziram em fibroblastos de camundongos. Essas iPS, porém, apresentaram problemas de metilação de seu DNA e mostraram-se incapazes de se desenvolver em embriões. 

No ano seguinte, a equipe de Yamanaka solucionou esse problema e produziu as primeiras células iPS viáveis. Contudo, como alguns dos fatores de transcrição empregados são oncogenes (c-Myc e Kfl4), associados à formação de tumores, e cerca de 20% dos animais que receberam essas células desenvolveram câncer. 

As primeiras tentativas de se utilizar células humanas para a produção de iPS foram relatadas emnovembro de 2007 pela equipe liderada por James Thomson, da Universidade de Wisconsin-Madison (EUA) e, novamente, pela equipe de Yamanaka que, utilizando a mesma metodologia empregada em camundongos, produziram iPS a partir de fibroblastos humanos. 

Um único fator 

Camundongo gerado a partir das células pluripotentes induzidas com o uso de um único fator de transcrição (foto: Jeong Beom Kim e colaboradores / Cell).

Contudo, talvez, o maior sucesso na produção de células iPS tenha sido obtido recentemente por uma equipe de pesquisadores da Alemanha e dos Estados Unidos liderados por Jeong Kim, da Universidade de Bonn (Alemanha), e publicado no número de hoje da revista científica Cell. Pela primeira vez, esses cientistas mostraram que é possível obter iPS a partir de células-tronco neurais adultas utilizando-se apenas um único fator de transcrição (Oct4) e não vários fatores, como se fazia anteriormente. 

As pesquisas realizadas pela equipe de Kim mostraram também que as iPS comportam-se como células-tronco embrionárias e podem se diferenciar em tipos celulares provenientes dos três tecidos embrionários que formam todos os órgãos de nosso organismo. A partir dessas iPS, foram produzidas células musculares cardíacas, células neurais e células germinativas, que podem ser disseminadas para as gerações futuras. 

No entanto, a equipe de Kim mostrou além disso que essas células podem também originar teratomas após serem injetadas sob a pele de camundongos. Mas a não utilização de c-Myc e Klf4, conhecidos oncogenes, pode tornar a ocorrência desse processo mais rara. 

iPS brasileiras 
Há algumas semanas também foi noticiada a obtenção das primeiras linhagens de iPS no Brasil, uma tecnologia ainda restrita a poucos países do mundo. O feito coube à equipe coordenada pelo neurocientista Stevens Rehen, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

A equipe de Rehen produziu uma linhagem de iPS a partir de fibroblastos de camundongos e outras iPS a partir da reprogramação de células de rim humano. O grupo também recorreu a vetores retrovirais com os genes para sintetizar os fatores de transcrição Oct4, Sox2, Klf4 e c-Myc. 

O domínio da técnica de reprogramação celular é importante porque permite que o país crie linhagens de iPS que poderão ser utilizadas para o estudo de doenças como o mal de Parkinson, a esquizofrenia, cardiopatias, síndrome de Down e distrofia muscular. 

Contudo, deve ficar claro que a utilização das iPS em testes clínicos com seres humanos ainda demandará muito tempo e estudos. Pesquisas posteriores mostrarão se essa reprogramação também pode ser feita com outros tipos de células-tronco adultas, ampliando-se assim as possibilidades de aplicação terapêutica dessa nova tecnologia. Além disso, é necessário também que sejam desenvolvidas formas eficientes para a introdução de Oct4 sem a utilização de retrovírus, uma metodologia incompatível com a utilização terapêutica dessas células.  

Jerry Carvalho Borges 
Universidade do Estado de Minas Gerais 
06/02/2009

SUGESTÕES PARA LEITURA 
Kim,J.B; Sebastiano,V.; Wu,G.; Arauzo-Bravo,M.J.; Sasse,P.; Gentile,L.; Ko,K.; Ruau,D.; Ehrich,M.; van den Boom,D.; Meyer,J.; Hubner,K.; Bernemann,C.; Ortmeier,C.; Fleischmann,B.K.; Zaehres,H.; Scholer,H.R.(2008). Oct4-Induced Pluripotency in Adult Neural Stem Cells. Cell 136, 411-419. 
Kim,J.B., Zaehres,H., Wu,G., Gentile,L., Ko,K., Sebastiano,V., Arauzo-Bravo,M.J., Ruau,D., Han,D.W., Zenke,M. e Scholer,H.R. (2008). Pluripotent stem cells induced from adult neural stem cells by reprogramming with two factors. Nature 454, 646-650. 
Niwa,H., Miyazaki,J., e Smith,A.G. (2000). Quantitative expression of Oct-3/4 defines differentiation, dedifferentiation or self-renewal of ES cells. Nat. Genet. 24, 372-376. 
Niwa,H., Toyooka,Y., Shimosato,D., Strumpf,D., Takahashi,K., Yagi,R., e Rossant,J. (2005). Interaction between Oct3/4 and Cdx2 determines trophectoderm differentiation.Cell 123, 917-929. 
Takahashi,K. e Yamanaka,S. (2006). Induction of pluripotent stem cells from mouse embryonic and adult fibroblast cultures by defined factors. Cell 126, 663-676. 
Takahashi,K., Tanabe,K., Ohnuki,M., Narita,M., Ichisaka,T., Tomoda,K., e Yamanaka,S. (2007). Induction of pluripotent stem cells from adult human fibroblasts by defined factors. Cell 131, 861-872. 
Yu,J., Vodyanik,M.A., Smuga-Otto,K., Antosiewicz-Bourget,J., Frane,J.L., Tian,S., Nie,J., Jonsdottir,G.A., Ruotti,V., Stewart,R., Slukvin,I.I., e Thomson,J.A. (2007). Induced pluripotent stem cell lines derived from human somatic cells. Science 318, 1917-1920.