Moléculas extremamente importantes para o funcionamento correto de nosso corpo podem representar, em um contexto diferente, a origem de problemas graves. Um exemplo disso acaba de ser demonstrado por pesquisadores canadenses coordenados por Josef Penninger, da Universidade de Toronto. Os cientistas relacionaram a ocorrência de metástases de melanoma – um tipo muito agressivo de câncer de pele – com a presença, nos ossos de camundongos, de uma proteína importante para o processo de remodelagem dos ossos.
A proteína em questão, conhecida como RANKL, é uma das responsáveis por fazer dos ossos um dos tecidos mais fascinantes de nosso organismo. São estruturas rígidas e aparentemente estáticas, mas que apresentam uma grande dinamismo, sendo construídos, destruídos e novamente remodelados para se adequar às pressões mecânicas a que são submetidos diariamente. Os ortodontistas, por exemplo, valem-se dessa característica de nossos ossos para moverem os dentes para outras posições ao longo de nossas arcadas dentárias.
Radiografias do fêmur de um camundongo normal (à esquerda) e de outro deficiente na produção da proteína RANKL (à direita). Note o acúmulo ósseo nestes últimos (fonte:Blair et al., 2006).
Dois tipos celulares agem durante o processo de remodelagem óssea: por um lado, células conhecidas como osteoblastos constroem o novo osso enquanto que um outro tipo de células – os osteoclastos – tratam de remover a matriz osséa antiga. Para controlar esse processo, as células precisam trabalhar de forma altamente coordenada. Para isso, elas produzem diversos compostos químicos que instruem suas vizinhas sobre as pressões mecânicas a que cada local nos ossos está sendo submetido em um dado momento.
É justamente nesse processo que atua a proteína RANKL, que controla o funcionamento dos osteoclastos. Em organismos em que ela foi inativada ou está ausente ocorre um acúmulo de tecido ósseo conhecido como osteopetrose. Essa deposição excessiva não se deve a uma ativação exacerbada dos osteoblastos, mas sim a uma inibição do trabalho de remoção do tecido dos ossos pelos osteoclastos.
Mortalidade elevada
O melanoma, um tumor dos melanócitos (as células que produzem o pigmento que dá cor a nossa pele), é uma forma de câncer associada a uma elevada taxa de mortalidade. Sua letalidade se deve em grande parte à migração das células tumorais, que deixam a pele e se deslocam para outros locais, formando metástases que causam perturbações e afetam a estrutura e o funcionamento adequado dos locais recém-invadidos. No melanoma, os ossos são um dos locais preferenciais para a ocorrência de metástases.
Fêmur de camundongos que receberam células tumorais. O osso A é de um animal no qual a proteína RANKL foi bloqueada; os ossos B e C pertencem a animais em que isso não ocorreu e, portanto, houve o desenvolvimento de metástases, vistas como regiões escuras na superfície dos ossos (fonte:Penninger et al., 2006).
No estudo publicado em 30 de março na revista Nature , Penninger e seus colaboradores injetaram células de melanoma – identificadas através da presença de uma molécula fluorescente verde – no coração de camundongos. Após alguns dias, as células migraram para os ossos dos animais. Porém, esse processo não ocorreu quando a expressão de RANKL nos camundongos foi bloqueada. Outras análises realizadas pelos pesquisadores em placas de cultivo celular indicaram também que as células de melanoma desses roedores apresentam maior capacidade de migração na presença de RANKL. Além disso, essas células são atraídas para os locais onde a proteína está presente.
É interessante notar que, apesar de haver um acúmulo ósseo nos camundongos em que a RANKL foi inibida, a equipe de Penninger observou que esses animais estão mais propensos a desenvolverem fraturas e paralisias, pois seus ossos apresentam uma estrutura desorganizada e, por isso, mais frágil e sujeita a danos.
Além de mostrar como moléculas essenciais para o metabolismo podem estar por trás de complicações sob certas circunstâncias, o estudo do grupo liderado por Josef Penninger é interessante por ilustrar uma das características marcantes do câncer – a capacidade de se utilizar de estruturas e do meio bioquímico já estabelecidos para se perpetuar e abalar o equilíbrio delicado de nosso organismo.
Jerry Carvalho Borges
Universidade do Texas em San Antonio
(pós-doutorando)
07/04/2006