O cientista inglês James Lovelock é bastante conhecido como proponente da chamada hipótese Gaia, que defende que a Terra age como um superorganismo e, portanto, se autorregula. Embora tenha bom suporte científico em evidências e modelos, essa hipótese foi fortemente combatida por cientistas de várias áreas durante 25 anos, e apenas os climatologistas a consideraram útil. Atualmente, é mais aceita, mas, por mais interessante que seja, não é o tema central desta coluna.
O auê em torno da hipótese Gaia ofuscou outra parte da biografia desse cientista, muito interessante e produtiva, que incluiu, nos anos 1950, o desenvolvimento de detectores de captura de elétrons, que, acoplados a cromatógrafos a gás, permitiram aumentar consideravelmente a sensibilidade dos mesmos. Isso permitiu quantificar resíduos de pesticidas no ambiente e em alimentos, evidenciando sua ampla dispersão ambiental, assim como medir os níveis atmosféricos dos famosos CFCs (clorofluorocarbonetos), responsáveis pela ampliação do buraco de ozônio em altas latitudes. Essas e muitas outras contribuições experimentais ou teóricas fazem com que James Lovelock seja considerado, assim como Raquel Carson – autora do livro Primavera Silenciosa –, um dos pais do despertar ambientalista dos anos 1960.
Isso não o impede de defender com fleuma tipicamente britânica ideias que enfurecem muitos ambientalistas, como a de que já ultrapassamos os limites de emissão de carbono que permitiriam a autorregulação do clima, o que torna o aquecimento inevitável; de que devemos aderir maciçamente à geração de energia por via nuclear; de que energias alternativas como eólica e solar não nos salvarão; de que as previsões do IPCC são otimistas demais.
Segundo ele, até 2040, o Saara invadirá a Europa, e Berlim (Alemanha) será tão quente quanto Bagdá (Iraque) hoje. Phoenix (EUA) e Beijing (China) se tornarão lugares inabitáveis, invadidos pelo deserto. Miami (EUA) e Londres (Inglaterra) idem, mas por causa da elevação do nível do mar e de enchentes. Lovelock sugere admitir que Nova Orleans (EUA) e todo o Bangladesh não têm futuro e que o melhor a fazer é organizar a migração para outras áreas.
Não vai ser fácil, porque já tem gente lá. Mas o aquecimento e a fome decorrente empurrarão milhões de pessoas para o norte, elevando as tensões políticas. Lovelock prevê que, até 2100, América do Norte e Europa sofrerão aquecimento de 8 ºC, o dobro do que prevê o IPCC. “Os chineses não terão para onde ir além da Sibéria”, sentencia Lovelock. “O que os russos vão achar disso? Sinto que uma guerra entre a Rússia e a China seja inevitável.”
Migrações, epidemias, colapso
Com as dificuldades de sobrevivência e as migrações em massa, virão as epidemias. Até 2100, a população da Terra encolherá dos atuais 6,6 bilhões de habitantes para cerca de 500 milhões, sendo que a maior parte dos sobreviventes habitará altas latitudes – Canadá, Islândia, Escandinávia, bacia ártica.
Mas, Dr. Lovelock, desculpe, o Sr. não comentou nada sobre as altas latitudes do sul, só sobre as do norte. Consulte o mapa-múndi e concluirá que não foi esquecimento, só misericórdia. De fato, a zona temperada vai se deslocar para ambos os polos, equitativamente, mas, no caso do hemisfério Sul, ela ocupará a ponta da Patagônia na América do Sul e mais nada, já que simplesmente não há outras terras emersas nesse futuro círculo temperado. Vamos cobrir o mar com balsas para plantar comida dentro? Taí, nova oportunidade de negócios.
Lovelock considera que Gaia encontrará novo equilíbrio e que nossa civilização, como conhecemos até aqui, é a que corre perigo.
“Eu gostaria de poder dizer que turbinas de vento e painéis solares vão nos salvar”, comenta Lovelock. “Mas não posso. Não existe nenhum tipo de solução possível. Hoje, há quase 7 bilhões de pessoas no planeta, isso sem falar nos animais. Se pegarmos apenas o CO2 de tudo que respira, já são 25% do total emitido – quatro vezes mais CO2 do que todas as companhias aéreas do mundo liberam. Então, se você quer diminuir suas emissões, é só parar de respirar. É apavorante. Simplesmente ultrapassamos todos os limites razoáveis em números. E, do ponto de vista puramente biológico, qualquer espécie que faz isso tem que entrar em colapso.”
Situação de guerra
Lovelock compara a situação atual com a de 1939, em que, apesar da óbvia ameaça de guerra, ninguém parecia se dar conta do que estava em jogo e ainda se falava em conciliação até a véspera do conflito. Lovelock traça um paralelo entre a falta de liderança política de então e a da atualidade. “Em muito pouco tempo, estaremos vivendo em um mundo desesperador, comenta ele.
Lovelock acredita que está mais do que na hora de uma versão ‘aquecimento global’ do famoso discurso que Winston Churchill fez para preparar a Grã-Bretanha para a Segunda Guerra Mundial: “Não tenho nada a oferecer além de sangue, trabalho, lágrimas e suor. As pessoas estão prontas para isso, a população entende o que está acontecendo muito melhor do que a maior parte dos políticos.”
Difícil contestar o veterano cientista quando vemos a obsessão negacionista de nossas autoridades na condução da crise hídrica no Sudeste brasileiro, anunciada já em fins de 2013.
Difícil também não lembrar de Lovelock quando assistimos à repetição dos naufrágios de embarcações precárias lotadas de refugiados que tentam desesperadamente chegar à Europa. Só em quatro meses de 2015, eles já causaram 1.654 mortes, metade das ocorridas em 2014. A migração em massa já está em andamento, mata mais do que o atentado às Torres Gêmeas, só que todo ano, e o Mediterrâneo é o seu túmulo. Assim como em 1939, a Europa está dividida e não sabe como lidar com a situação.
A generalização e radicalização de conflitos é outra previsão de Lovelock. Previsão ou constatação? Pegue de novo o mapa-múndi e liste os países e regiões onde você poderia levar a família a passeio se tivesse grana. Concluirá que o mundo está encolhendo, e rápido.
O mesmo exercício aplicado a sua cidade e seu estado talvez lhe provoque a mesma incômoda sensação. A diferença é que, nessa escala, você talvez ainda possa fazer alguma coisa. Ou não, sei lá…
De qualquer modo, recomendo a leitura da entrevista integral de James Lovelock a Jeff Goodell, e dos vários documentos disponíveis na internet sobre esse notável cientista-cidadão.
Afinal, os detectores que ele desenvolveu nos anos 1950 continuam entre os mais sensíveis até hoje.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro