A tripla tragédia japonesa expõe cruamente o custo das apostas que fazemos enquanto espécie e civilização. Para gerar toda a energia que desejamos, convivemos com riscos, qualquer que seja a opção: carvão, gás, óleo, hidroeletricidade, eólica, solar, nuclear, todas elas envolvem riscos que podem ser medidos ou calculados com precisão cada vez maior.
A percepção do risco, no entanto, pertence a outra esfera, subjetiva e inacessível aos engenheiros e toxicologistas, e tem pouca relação com o risco real. A disparidade entre essas esferas – o risco de um lado e sua percepção do outro – aumenta conforme a complexidade da tecnologia ou prática.
Nesse quesito, a tecnologia nuclear é campeã. É complicado explicar a radioatividade, natural ou artificial, que nenhum de nossos sentidos é capaz de perceber.
Para saber se estou contaminado, preciso achar um técnico que tenha um detector apropriado, em boas condições de funcionamento, que saiba usá-lo e interpretar os sinais cabalísticos que emite, e ainda entender o que esse técnico me diz e, finalmente, confiar no seu veredito. É pedir muito, especialmente em se tratando de algo que não vejo, sinto ou percebo.
Para piorar, as emissões radioativas podem ser radiações, como o raio gama, de natureza semelhante à da luz, mas invisível e de energia muito superior, ou fluxos de partículas, como alfa ou beta, que têm massa e carga elétrica. Raios gama podem viajar de uma galáxia a outra, alfa são detidos por uma folha de papel e beta não viajam mais que alguns metros no ar. Os elementos radioativos podem ainda emitir combinações de radiações diferentes.
Em caso de exposição a uma fonte externa ao corpo, naturalmente as radiações gama serão motivo de maior preocupação que as demais devido ao seu maior alcance. Porém, em caso de contaminação interna por inalação ou ingestão de ar, alimentos e água contaminados, as emissões alfa e beta causarão mais danos do que as gama, por irradiarem diretamente nossos tecidos internos.
Falhas de comunicação
Os detectores portáteis que vemos no noticiário sobre a crise nuclear no Japão medem a taxa de exposição à radiação. Portanto, só percebem as emissões que chegam até eles e medem a dose de radiação por exposição externa.
Se houver emissores alfa na atmosfera, que podem levar à inalação de doses elevadas dessas partículas, esses detectores são incapazes de estimá-las. Para detectá-las são necessários equipamentos e cálculos bem mais complexos.
Em condições normais de operação, reatores nucleares emitem pequenas quantidades de elementos radioativos cujo inventário é mantido com grande zelo e alimenta modelos matemáticos que calculam, em tempo quase real, as doses externas e internas por qualquer via de exposição, em qualquer direção e a distâncias de até 50 km. Por que calcular e não medir? Porque as doses são baixas demais para serem medidas diretamente, mesmo por detectores de elevada sensibilidade.
A tragédia nuclear japonesa expõe, também com muita crueza, o custo da escolha feita pela indústria nuclear de não buscar uma política eficiente de comunicação de riscos.
A energia nuclear foi apresentada ao mundo de forma brusca e, sobretudo brutal, em 1945, quando as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki mataram cerca de 200 mil civis, e nunca se recuperou plenamente desse trauma de infância. É mais um dos muitos elementos dessa tragédia sua ocorrência no mesmo país que sofreu o único ataque nuclear registrado na história.
O problema é que, se por um lado é difícil comunicar riscos em geral e riscos nucleares em particular, não fazê-lo acaba justificando e amplificando a desconfiança e paranoia. Radiações invisíveis, destruição em massa, opacidade, segredo: quantas dimensões simbólicas conspirando para o aumento e distorção da percepção de risco?
No caso da tragédia japonesa, o autismo das autoridades locais só aumenta a angústia e o medo. O governo japonês e a empresa privada que opera o complexo nuclear não dizem quase nada do que queremos saber.
A Agência Internacional de Energia Atômica e o governo norte-americano acabam sendo os porta-vozes improvisados que, como os oráculos da Antiguidade, interpretam e traduzem os poucos sinais emitidos.
Diferente mas semelhante
Dessa vez não houve guerra ou crasso erro humano como no acidente de Chernobyl. A tragédia foi provocada pela improvável combinação de um terremoto de alta intensidade, seguido de um tsunami de proporções bíblicas.
Mas, ironicamente, na sequência de eventos que levaram ao desastre, o acontecimento decisivo envolveu os elementos menos complexos ou de tecnologia mais simples do complexo nuclear: uma simples pane de geradores. Isso mesmo, um motor a explosão que faz girar um dínamo e gera eletricidade, como a força muscular do ciclista move o pequeno dínamo que alimenta o farolete da bicicleta.
No caso de uma central nucleoelétrica, naturalmente, o dínamo é enorme, algo equivalente a várias locomotivas juntas. Sem os geradores, não havia energia para bombear a água que resfria os reatores, levando ao derretimento das varetas de combustível do núcleo do reator, superaquecimento e explosões.
As últimas foram violentas o bastante para danificar a espessa contenção de concreto onde fica alojado o núcleo do reator e, por isso, está havendo vazamento para a atmosfera de produtos radioativos que normalmente ficam confinados nas pastilhas de combustível ou na atmosfera interna do reator.
No caso de Chernobyl, o incêndio resultante do superaquecimento espalhou material radioativo por toda a Europa porque o reator não possuía contenção hermética como a quase totalidade das centrais nucleares em operação hoje, incluindo as do Japão. O acidente que estamos presenciando é, portanto, muito mais surpreendente que o de Chernobyl.
Mas o autismo oficial nos dois acidentes foi muito semelhante. No caso de Chernobyl, o acidente foi descoberto pelos operadores de centrais nucleares suecas, que não acreditaram no que seus sistemas de monitoração on-line de radiação lhes indicavam insistentemente, a saber, a presença no ar de elementos radioativos artificiais que só poderiam provir de vazamento grave de instalação radioativa.
Mas não havia problemas nas centrais suecas, finlandesas ou alemãs, tendo todas elas detectado as mesmas anomalias. A direção dos ventos apontava para uma origem a leste, mas a Rússia insistiu em negar a verdade durante algum tempo. Naquele remoto ano de 1986 nem existia a internet, mas faxes e telefonemas acabaram colocando a Rússia na parede.
Ficamos sabendo há pouco de mais uma explosão na central de Fukushima pela televisão, uma hora antes do primeiro-ministro japonês.
E somos bombardeados pela mídia com os pacotes de informação sobre o tema que nos haviam sido sonegados até aqui, num tratamento de choque que só aumenta a confusão, inclusive por conta das numerosas incorreções e confusões dos textos disponíveis.
Mas o pior é não saber a real dimensão da contaminação nem o que esperar para os próximos dias. Quem sabe não diz. A nós, que não sabemos, mas desconfiamos, resta rezar para que os esforços heroicos de um pequeno grupo de técnicos japoneses deem resultado.
E que, enquanto isso, o vento continue soprando para o mar.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro