O trecho acima, do Hino de Minas Gerais, explica bem por que o estado tem esse nome: são mencionados o ouro, os diamantes, o ferro. Mas, antes de haver estados no Brasil, o extrativismo já era nossa marca de nascença. Primeiro o pau-brasil, os papagaios e os índios. Depois as Entradas e Bandeiras, em busca de mais escravos índios e, se possível, esmeraldas, ouro e prata. Afinal, havia relatos sobre o Eldorado e os rios de prata (sim, nossos indígenas sabiam que seus colegas andinos extraíam muita prata), no entanto, os bandeirantes voltavam cheios de escravos, mas sem prata, ouro ou esmeraldas.
Com o tratado de Tordesilhas, a Espanha ficou com a prata e o ouro do Peru e da Bolívia e Portugal se consolou temporariamente com outro ouro, branco – o açúcar. Até serem descobertos diamantes e ouro na região mais tarde chamada… Minas Gerais. E a mineração passou a ser o principal motor de colonização e ocupação do vasto e pouco conhecido interior da colônia.
Um histórico infeliz
Esgotados os filões e veios mais acessíveis de minérios preciosos, os garimpeiros viraram fazendeiros e a mineração voltou-se para os minérios menos preciosos, como o ferro, que é ou era o metal extraído na mina da Samarco, distrito de Bento Rodrigues, em Mariana.
Tal distrito, ou o que sobrou dele depois do tsunami de lama, fica no chamado Caminho do Ouro, que era o caminho seguido pelas tropas de burros que ligavam Diamantina e Ouro Preto ao litoral, onde o porto de embarque foi inicialmente Paraty e, depois, o Rio de Janeiro. Hoje, a denominação Caminho do Ouro soa melancólica e inapropriada, pelo menos em Bento Rodrigues.
Há outros aspectos simbólicos em torno do acidente. A mina da Samarco fica no pé da Serra do Caraça, um dos acidentes geográficos mais notáveis do estado. Mas as minas são bebês ingratos que roem o pé, o colo e as entranhas de suas mães, e podem fazê-las desaparecer para sempre. Lembro que, nos anos 1970, uma das primeiras campanhas ambientais do Brasil teve como palco Belo Horizonte, cujo horizonte de serras ricas em ferro estava sendo desmontado pela mineração. Os carros tinham adesivos que diziam “Olhe bem as montanhas”.
A campanha de fato salvou o que sobrava do horizonte da capital, mas não impediu que Minas Gerais se tornasse o campeão nacional de acidentes ambientais provocados por rompimentos de barragens de rejeitos de mineração. Apesar da feroz competição, o acidente de Mariana é o maior de todos, pela dimensão, pelas consequências, e pelo saldo de mortos e desaparecidos.
Geografia de um desastre
A figura acima dá algumas pistas que explicam a dimensão do acidente e mostra o aspecto da região antes do mesmo. A mineradora Samarco ocupa uma área total de 22 quilômetros quadrados, com cavas de minas ativas ou inativas, depósitos, instalações e barragens de rejeitos. Estas últimas, quando íntegras, cobriam uma área total de cerca de cinco quilômetros quadrados (21% da área total). Estimei os números acima medindo as distâncias na imagem gerada pelo Google Earth, e considerando apenas as marcas visíveis de alteração de uso do solo.
Como todo núcleo populacional rio abaixo de uma barragem, seja ela hidrelétrica, portanto contendo água, ou de rejeitos, e contendo lama, Bento Rodrigues era refém da segurança e da boa gestão das barragens rio acima.
Tudo indica que houve deficiências no projeto das barragens e/ou na sua execução, gestão, e, claro, na fiscalização. Não havia chovido nos dias anteriores. Ah, mas houve um tremor sísmico de baixa intensidade no dia do rompimento da barragem. Certo, mas não se tem registro de nenhum dano estrutural em nenhum outro lugar da região por conta disso. Agora, se a barragem estivesse por um triz, qualquer cócega seria suficiente.
Resposta demorada
Assim que o acidente foi divulgado, a empresa se apressou em dizer que seguiu o plano de emergência e avisou as autoridades. Dois dias depois, ficamos sabendo que não havia sirenes de emergência e que a população de Bento Rodrigues foi avisada sobre o rompimento da barragem por telefone. As equipes de busca e de reportagem ainda estão à procura de sobreviventes que possam confirmar a versão.
Ficamos sabendo também que a licença ambiental da mina estava vencida há uns dois anos e que isto seria devido à falta de estrutura dos órgãos ambientais do estado. Já o setor empresarial não demostrou falta de estrutura alguma: o secretário de estado de Minas Gerais, que tem uma biografia associada de perto a associações empresariais, lembrou que a empresa responsável pela represa era, ela própria, uma vítima do rompimento. Coitada. Só falta ela pedir indenização ao estado, à união e, quem sabe, também às vítimas.
O desencontro de informações segue a pleno vapor à medida que os dias passam. A empresa assegura que a lama da barragem contém apenas argila, areia e substâncias inertes. Não deu detalhes sobre quais seriam nem quais os critérios para considerar algo inerte ou não. Já os bombeiros que trabalham no resgate dizem que a lama cheira a soda cáustica. Nenhum órgão ambiental forneceu dados sobre a composição desta lama. Eu disse dados, não declarações. Dados resultantes de amostragem e análise rigorosa. A empresa também não forneceu esses dados, insiste na inocência química de sua lama.
Enquanto isso, o prefeito de Baixo Guandu, cidade no rio Doce que foi atingida pela frente de lama que segue viajando rio abaixo, encomendou análises de metais pesados na água do rio e afirma que esta contém 2,6 miligramas de arsênio, sendo que o aceitável é de, no máximo, 0,01 miligrama. A matéria disponível no link acima não diz quem realizou as análises, se os 2,6 miligramas são por litro ou mililitro, de água filtrada ou bruta e qual órgão sugere o limite de 0,01 miligrama, nem para que tipo de uso da água.
A academia também brilha pela sua ausência e parece não ter feito muita diferença a existência de grupos de pesquisa que dispõem de analisadores multielementares, capazes de analisar meia tabela periódica em minutos. A disponibilidade que faltou foi de outra natureza. Não percamos as esperanças, quem sabe aparecem dados daqui umas semanas?
As autoridades justificaram sua demora em reagir explicando que estavam levantando as responsabilidades. Nem precisava tanto esforço, já há duas leis que explicam tudo do acidente, inclusive as responsabilidades: a lei da gravidade e a lei do mais forte. Não me arrisco a dizer qual das duas é a mais impiedosa.
Em tempo, no Brasil, os royalties pagos por projetos de mineração aos municípios onde se instalam são atualmente de 2%. Há projetos para passar a esmola para 4%. Mas há países onde os royalties são de 10% ou mais.
Lembremos, ainda, que estão em andamento no nosso ilibado legislativo propostas e negociações para tirar o licenciamento ambiental de estados e união, transferindo a atribuição aos municípios. A mesma turma quer aproveitar a viagem para passar ao Congresso a demarcação de terras indígenas. Por alguma razão que não consigo imaginar, as empresas de mineração apoiam com entusiasmo ambas propostas.
Hoje, as raposas legislam sobre o galinheiro de forma indireta. Se estas propostas passarem, as raposas passarão a reinar sem intermediários.
Segundo o dicionário Aurélio, a pátria alcantil do hino mineiro é uma referência a rochas escarpadas, pináculos e cumes. Já a pátria mercantil dispensa apresentações – é nossa velha conhecida.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro