Era uma vez um reino muito, muito distante, que decidiu adotar uma lei sobre a biodiversidade, publicada em um 9 de agosto em seu diário oficial. O texto, com 174 artigos, foi adotado após mais de dois anos de discussão e tramitação no legislativo e validado pelo conselho constitucional do reino.
A lei determina a criação de uma agência nacional para a biodiversidade, que deve estar em pleno funcionamento um ano após a promulgação. A agência – que reagrupará 1.200 técnicos de órgãos de gestão das águas, parques nacionais, áreas marinhas protegidas e áreas naturais – dará apoio cientifico, técnico e financeiro às políticas para a água, a biodiversidade, os meios marinhos e outros temas ambientais. Terá, ainda, poderes de policia administrativa e judicial para assuntos ligados a água e meio ambiente, em colaboração com os demais agentes públicos competentes.
Entre outros avanços, a lei inscreve novos princípios no código ambiental e civil, a saber, a) não-regressão do direito ambiental; b) meta de zero perda líquida de biodiversidade; c) proteção dos solos de interesse coletivo, incorporados ao patrimônio nacional; d) regulamentação da compensação por danos à biodiversidade no código ambiental; e e) no código civil, criação de um regime de reparo de dano ecológico, inscrevendo na jurisprudência o princípio do poluidor-pagador.
Proibição de pesticidas
Está achando tudo muito avançadinho? Tem mais. A lei reforça os meios de proteção a espécies ameaçadas, criando zonas prioritárias para a biodiversidade e zonas dedicadas à conservação de serviços ambientais dependentes da funcionalidade de áreas úmidas e corpos d’água. Ela prevê, ainda, a proibição do uso de pesticidas contendo neonicotinoides dois anos após a promulgação – o que é ótimo, mas, também, uma pena, já que estes continuarão dizimando polinizadores e outros insetos úteis até lá.
Para limitar o impacto do lixo plástico nos mares, proíbe-se o uso de microesferas plásticas em cosméticos e o de cotonetes com hastes plásticas respectivamente dois e quatro anos após a promulgação da lei. Podiam ter aproveitado e proibido o cotonete, pura e simplesmente, se tivessem consultado um otorrino em vez de ouvir o canto do lobby da indústria. Qualquer médico especializado lhes diria que a única coisa que podemos enfiar no ouvido é o cotovelo.
Mas vamos em frente com o pacote de modernidades. Há reforço das sanções penais para tráfico de espécies ameaçadas e previsão de ratificação do Protocolo de Nagoya, disciplinando o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados, assim como a partilha dos lucros e benefícios decorrentes dos mesmos.
Trocas de sementes
A lei da biodiversidade também versa sobre a atividade agrícola. Vejamos como.
Desde os primórdios da agricultura, guarda-se uma parte da produção de sementes para o próximo plantio e para trocar com os agricultores vizinhos. Com a multiplicação de pedidos de patentes sobre seres vivos e o domínio do mercado de sementes por empresas de biotecnologia, a prática milenar de guardar sementes virou crime e a de trocá-las, contravenção. Mas os legisladores consideraram que isso é um freio à inovação e, assim, decidiram banir o patenteamento de produtos resultantes de processos essencialmente biológicos. Ou seja: é permitido trocar sementes novamente.
Para preservar a biodiversidade cultivada, também são autorizadas as trocas e cessões gratuitas aos jardineiros amadores e as trocas gratuitas, entre agricultores, de sementes vegetais pertencentes ao domínio público, ou seja, não inscritas no catálogo oficial de plantios vegetais.
Interessante, pois isso sugere duas coisas. A primeira: que continua existindo um catálogo oficial de sementes que não podem ser trocadas nem de graça. Deve ser porque têm dono. A segunda: se a troca ou doação de sementes de domínio público foi agora permitida, é sinal de que já foi proibida.
É mesmo intrigante esta nossa espécie, que permite que uns poucos se apropriem de 10.000 anos do conhecimento e trabalho de muitos, passando, então, a proibir as práticas que permitiram este mesmo conhecimento e, consequentemente, promovendo a erosão da biodiversidade, que é a própria matéria-prima da agricultura.
Essa postura é certamente lucrativa, mas é também suicida, e não apenas para as empresas, mas também para a sustentabilidade da sociedade como um todo. Talvez por isso mesmo o tal reino muito, muito distante tenha resolvido promulgar a sua Lei sobre a Biodiversidade, antes que seja tarde demais.
Mas esta nossa espécie é também curiosa por natureza e adora uma história, uma adivinhação, um mistério. Por isso mesmo, nossa história não pode ficar sem final. Resta esclarecer: que reino muito, muito distante e muito moderninho seria esse? Algum país com megabiodiversidade? Costa Rica? Guatemala, Cuba, Colômbia, Peru, Tailândia, Vietnã, Nova Zelândia? Alguém disse Brasil? Ou, ao contrário, algum país arrasado tentando resgatar a biodiversidade perdida?
Nananinanão. O tal reino é a França e a lei foi promulgada neste mês de agosto de 2016.
Enquanto isso, em outro reino nem tão distante, a rainha foi deposta e os ocupantes do trono odeiam biodiversidade, seja ela natural ou política. Mas isso é outra história…
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro