Leitura e memória

Vou comentar duas piadas. O objetivo é mostrar que, quando lemos, mobilizamos uma memória de cunho histórico, que também pode ser chamada de interdiscursividade (outras teorias a chamam de conhecimento de mundo, ou prévio). 

Do ponto de vista teórico, tais dados mostrariam que uma língua não é um código, ou, corolário desta concepção, que um texto não é codificado. Lemos bem mais do que está escrito. 

É claro que existem textos codificados (um endereço, por exemplo, talvez algum convite para uma reunião ou festa que inclua todas as informações). Mas os textos mais interessantes são os outros, os que evocam ou requerem outros textos. 

Vejam as piadas:

 (1)
– Por que o placar do Pacaembu já não marca mais as horas?
– Porque os corintianos já roubaram o relógio. 

(2)
– Vocês sabem por que corintiano gosta tanto de tocar cavaquinho?
– Porque é o único instrumento que dá para tocar algemado.

Começo pelo começo, isto é, retomo o que estes textos supõem conhecido ou aceito sem discussão. Breve e esquematicamente: 

a) o fato (ou tomado como fato) de que o Corinthians é o time do povo, “povo” significando, também resumidamente, os pobres, os populares, e não os habitantes de uma nação (como em “povo brasileiro”); 

b) o povo é pobre; daí se dizer que corintianos são os pobres;

c) imaginariamente (mas quase nada é tão verdadeiro), povo é pobre e pobre não estuda; 

d) a passagem central neste conjunto de memórias é que pobre é ladrão (“roubaram o relógio”, na segunda piada); 

As “informações” centrais dessas piadas não estão expressas no texto. Trata-se da conexão, ou da relação causal, entre pobreza e criminalidade, que faz parte de uma memória de longo prazo

e) o núcleo da segunda piada é que ladrão é condenado (estar algemado implica ter sido condenado ou, pelo menos, preso; se preso, violou a lei; pobre viola a lei roubando).

Ou seja: as “informações” centrais dessas piadas não estão expressas no texto. Trata-se da conexão, ou da relação causal, entre pobreza e criminalidade, que faz parte de uma memória de longo prazo (isto é, que vem de longe) e que os dados oficias não conseguem mudar, porque, de certa forma, a tese se tornou um preconceito, ou seja, um conceito prévio e não analisado. 

Nem adiantam, contra ele, as numerosas informações segundo as quais quem menos se endivida são os pobres, quem mais paga empréstimos são os pobres (rico rola dívida…) e que os grandes roubos não são perpetrados por pobres. Nem mesmo adianta a famosa frase de Riobaldo: “pobre tem um triste amor à honestidade”.

O avesso do imaginário sobre o corintiano, em São Paulo, pelo menos, é o do são paulino, que seria tipicamente de classe média (não pobre). Os dois imaginários estão presentes em uma frase de recente presidente do clube (escorraçado, aliás, por corrupção), comemorando a volta de Kaká, há algum tempo. Segundo ele, tratava-se de jogador com a cara do clube: “fala bem, é bonito, tem todos os dentes”.

Quem conhece a rivalidade entre os dois clubes – certamente, hoje, a mais viva em São Paulo – ouve nessa fala uma avaliação positiva de um clube e uma negativa de outro: o clube dos que não falam bem, são feios e não tem dentes – o Corinthians. Só faltou dizer que Kaká não roubava ou nunca tinha sido preso…

Memória, preconceitos. Eventualmente, não explicam apenas preferências clubísticas. Explicam também resultados eleitorais. 

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas