China. Muito se fala desse país. Não apenas em termos de poderio econômico – não existem mais dúvidas que se trata de uma das maiores potencias deste século – mas também na importante contribuição que os seus fósseis têm dado para uma melhor compreensão da evolução da vida no passado. Basta verificar os trabalhos sobre organismos extintos chineses publicados nas prestigiosas revistas Nature e Science nos últimos dez anos, que chegam ao redor de três dezenas.
Dos depósitos paleontológicos desse país, um conjunto se destaca dos demais: os que formam o grupo Jehol. Divididas em duas formações – na base a Formação Yixian e no topo a Formação Jiufotang –, essas camadas representam rios e lagos que existiram entre 138 e 120 milhões de anos atrás, sendo que os depósitos mais fossilíferos se formaram há 125-120 milhões de anos. Os principais afloramentos são encontrados na província de Liaoning. Intercalados a essas camadas existem tufos vulcânicos, que são o resultado de constantes erupções ocorridas no passado, o que deu a essa região o apelido de “Pompéia do Cretáceo”.
Essa intensa atividade vulcânica deixou lâminas e camadas esbranquiçadas ou amareladas e trouxe duas grandes contribuições para os paleontólogos. Primeiro, as rochas vulcânicas fornecem a possibilidade de datação absoluta das camadas, fazendo com que se tenha uma boa noção de quando os fósseis se formaram. Segundo, a atividade vulcânica produziu freqüentemente eventos de mortandade – provavelmente por asfixia –, permitindo a preservação da fauna e flora que existia no local. De forma simplificada, seria como se houvesse uma coleta ‘natural’ de tempos em tempos de amostras dos organismos que viveram em um determinado ponto.
Assim, como resultado, estes depósitos chineses representam o mais perto que se pode chegar de ecossistemas completos que se sucederam durante o Cretáceo. Centenas de fósseis já foram encontrados de espécies dos mais distintos grupos, como plantas (gimnospermas e algumas das primeiras angiospermas), microfósseis, insetos, aranhas, peixes, anuros, salamandras, lagartos, tartarugas, répteis marinhos, pterossauros, mamíferos, dinossauros não-avianos e aves, entre outros. Destacam-se os dinossauros com penas, que forneceram novas informações sobre a evolução das aves e do vôo, cujos estudos tiveram grande repercussão em todo mundo. Talvez o mais importante achado seja o dinossauro
Microraptor guii , que possui penas tanto nos braços como nas pernas. Uma réplica deste espetacular fóssil será apresentado no
II Congresso Latino-americano de Paleontologia de Vertebrados em agosto.
Procurando mais organismos extintos nas camadas de Liaoning, pesquisadores brasileiros participaram desde 2004 de escavações realizadas por colegas do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia, na China (IVPP, na sigla em inglês). Essa atividade é parcialmente financiada pelas Academias Brasileira e Chinesa de Ciências, pelo CNPq e pela Faperj – além dos projetos específicos do IVPP. O trabalho de campo deste ano foi realizado entre maio e julho, perto da cidade Chaoyang, em uma região que contem rochas da Formação Jiufotang. O local escolhido tem fornecido, sobretudo, aves e pterossauros, estes últimos o principal objeto de pesquisa envolvendo paleontólogos chineses e brasileiros.
Deixando Beijing, iniciamos uma viagem de 7-8 horas de carro até o local da escavação. Uma equipe do IVPP já estava lá há duas semanas e tinha iniciado as etapas preliminares, que é a seleção do ponto exato da escavação e a remoção das camadas estéreis que recobrem os depósitos com fósseis. As estradas são, em geral, muito boas até um ponto bem próximo do nosso destino final, quando o caminho simplesmente desaparece e é cortado por um rio. Apesar de largo, o rio aparentava ser bem raso e, à primeira vista, parecia fácil de ser atravessado… Parecia! Apesar do potente Mitsubishi com tração nas quatro rodas, atolamo-nos e não houve maneira fácil de retirar o carro – nem mesmo empurrando com a água até o joelho! Felizmente, estávamos viajando com dois carros e, depois de bastante esforço e uma corda trazida por um terceiro veículo que se encontrava na escavação, conseguimos desatolar o carro atravessar o rio em um outro ponto.
O vilarejo perto da escavação é muito simples e pobre. Os habitantes – cerca de 200 agricultores – estavam em plena atividade, semeando a terra. Muitos nunca tinham visto um ocidental de perto e eram bem curiosos e gentis. Alguns nos olhavam intrigados e, por meio de colegas que falavam inglês, nos perguntavam: “Vocês não deveriam estar em seu país semeando a terra, como nós, para não perder a próxima colheita?!”
A base – onde a maior parte da equipe estava alojada – era uma casa alugada no vilarejo ha cerca de 500 metros da escavação. Simples, mas bem construída, era suficiente para as necessidades da equipe: três cômodos, mais a cozinha, onde dormiam no total de sete a doze pessoas. O banheiro estava situado fora da casa. Um dos cômodos servia de refeitório, com o retrato do camarada Mao pendurado na parede – costume muito difundido na China.
Logo no primeiro dia fomos até a escavação. A primeira vista, era um “buraco” de aproximadamente 10 x 20 metros no meio de um campo de plantação. O trabalho inicial – que já tinha sido feito pela equipe do IVPP e cerca de 20 camponeses – consistiu em retirar a terra até atingir as camadas fossilíferas. Dois níveis eram os principais: o superior era menos rico e continha, sobretudo, ossos isolados, enquanto o inferior, situado abaixo de uma espessa camada de tufos vulcânicos, era o objetivo maior da escavação; nele já haviam sido encontradas centenas de fósseis. Como chovera nos dias anteriores, havia uma espessa camada de lama cobrindo toda a escavação. Era muito material – mas, quando chegamos na manhã seguinte, não havia mais nada. O trabalho de remoção da lama tinha entrado madrugado adentro e, segundo os colegas chineses, acabado em torno das quatro da manhã.
Logo após o café, às oito horas, estávamos de joelhos, removendo pequenas lascas de sedimento, procurando por restos de organismos extintos. Pode parecer que coletar fósseis é igual em toda parte. Mas não é bem assim. A substância da qual os fósseis são formados e a sua preservação varia de região para região. Assim, é importante acostumar desde cedo o olho para não confundir partes do organismo fossilizado com a rocha onde eles estão preservados. No caso de Liaoning, sabíamos que aquelas camadas continham aves e pterossauros, todos geralmente de pequeno tamanho e bem frágeis.
Assim, a estratégia era a seguinte: após horas de joelhos, quando alguém encontrava um pedaço de osso, se fazia um bloco grande ao redor do material. O bloco era retirado para que o fóssil pudesse – no futuro – ser preparado em um laboratório adequado, de preferência sob uma lupa, com a retirada da rocha sem danificar o fóssil. O maior erro seria o de, numa ansiedade de saber o que se encontrou, tentar expor os ossos, o que sempre resulta na quebra de muito material.
Após semanas de trabalho e muitas horas de joelhos, tivemos um balanço parcial dos achados: 80 exemplares, dos quais 63 de aves, nove de dinossauros, cinco de peixes grandes (os pequenos e comuns não foram coletados) e três possíveis pterossauros. Para mim, é absolutamente fascinante o fato de se encontrar tantas aves – não existe nenhum outro lugar no mundo onde restos desses vertebrados emplumados que viveram no Mesozóico sejam encontrados em tanta abundância como em Liaoning. O registro brasileiro, por exemplo, é limitado a algumas penas.
A parte mais dura para um paleontólogo vem agora – a espera! Foram horas mal dormidas, joelhos esfolados, calor, extensas viagens desconfortáveis em carros e existe sempre uma natural ansiedade com a pergunta: quais foram os resultados obtidos? No caso dessa escavação em Liaoning, obtivemos vários exemplares de aves, dinossauros e alguns poucos pterossauros – o que demonstra o sucesso da escavação. Porém, serão espécies novas? Algum exemplar descoberto possui características especiais que irão nos permitir entender melhor a evolução de algum grupo?
Essas respostas, no entanto, só poderão ser obtidas quando os fósseis coletados tiverem sido preparados, o que levará de meses a anos. De certa forma, isto nos dá um certo sentimento de anticlímax – após tanto trabalho, não temos a exata noção do que efetivamente descobrimos. Por outro lado, é importante que todos tenham a consciência de que toda extraordinária descoberta ‘nasce’ da mesma forma: são horas de coletas, de preparação e de pesquisa até que resultados sejam publicados e disponibilizados para o público.
Seja como for, estamos muito contentes com os fósseis que coletamos na “Pompéia do Cretáceo”. Essa região forneceu tantas descobertas importantes que já reservou o seu lugar de destaque no cenário da paleontologia mundial deste século. Quem sabe alguns dos nossos exemplares será a próxima? De qualquer forma, podemos dizer, no momento: “Gongxi Zhongguó!” (ou, em bom português, “Parabéns China!”).
Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
15/07/05
Paleocurtas
As últimas do mundo da paleontologia
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Pesquisadores americanos realizaram um levantamento da relação entre predadores e presas em braquiópodes – invertebrados marinhos com o corpo protegido por uma concha com duas valvas que sobreviveram desde o Cambriano até os dias de hoje. Usando coleções de 18 museus (com 44.497 exemplares) e dados publicados na literatura, eles puderam determinar que perfurações na concha (as marcas mais comuns deixadas por predadores) são encontradas em baixa quantidade nos braquiópodes nos diferentes períodos geológicos. Através de métodos estatísticos eles concluíram que essas perfurações deveriam ser resultado de ataques oportunistas e esporádicos de predadores que possivelmente se confundiram com relação a sua presa, atacando braquiópodes ao acaso. Assim, eles recomendam cautela no uso desses invertebrados marinhos para estudos relativos a interação entre presa e predador. A pesquisa foi publicado em junho na Science .
Pesquisadores americanos e argentinos analisaram a interação entre plantas e insetos a partir de 3.599 exemplares de folhas fósseis coletadas em rochas dos depósitos de Laguna del Hunco (Eoceno, 52 milhões de anos atrás) situados na região de Chubut (Patagônia, Argentina). Eles compararam os resultados com três depósitos de idade similar da América do Norte e concluíram que o material argentino registra uma diversidade maior não apenas de espécies de plantas mas também de marcas deixadas por insetos, o que indica a existência de uma maior diversidade de insetos herbívoros naquele tempo. Tal fato levou aos pesquisadores a sugerirem que a interação entre plantas e insetos em climas quentes era maior na América do Sul e deve ter contribuído para a maior diversidade que existe atualmente neste continente. A pesquisa foi publicada na revista Proceedings of the National Academy of Science .
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) inaugurou em junho a exposição
Vida , que tem como objetivo apresentar teorias científicas sobre a origem da vida e discutir a problemática envolvendo a engenharia genética. A mostra consiste em diversos módulos e painéis, além de uma oficina para extração de DNA. Também são exibidos fósseis e meteoritos cedidos pelo Museu Nacional da UFRJ, entre os quais o esqueleto e a reconstrução em vida do dinossauro
Santanaraptor e uma reconstituição do crânio do réptil voador
Thalassodromeus . A exposição, cuja entrada é gratuita, pode ser visitada até o final deste ano. Para mais informações, escreva para
[email protected] .
Paleontólogos chineses e norte-americanos acabam de descrever um novo mamífero fóssil da China. A espécie Heishanlestes changi foi encontrada em depósitos do Cretáceo Inferior do nordeste da China e pertence a um grupo muito raro de mamíferos chamado de Symmetrodonta, caracterizado por uma dentição peculiar dos molares. A nova espécie, conhecida a partir de mandíbulas, tem uma relação próxima com espécies anteriormente encontradas apenas na América do Norte. Os pesquisadores acreditam que o Heishanlestes utilizava os pré-molares para esmagar e os molares para cortar o alimento, uma adaptação interessante para um mamífero primitivo. O estudo foi publicado na revista American Museum Novitates .
A Associação Européia de Paleontologia de Vertebrados ( EAVP ) está organizando um simpósio sobre Sauropterygia – grupo que reúne répteis marinhos extintos como os plesiossauros e notossauros. O estudo desses répteis é bastante importante, pois ilustra a seqüência de modificações anatômicas que animais terrestres desenvolveram para se adaptarem ao ambiente aquático. O evento será em Karlsruhe (Alemanha) entre 4 a 8 de setembro de 2006.
Entre 27 e 29 de junho de 2006 será realizado o 9o Simpósio sobre Ecossistemas Terrestres e Biota Mesozóicos na Universidade de Manchester, Inglaterra. No evento serão apresentados trabalhos que trazem um melhor conhecimento dos ecossistemas que existiram na Era Mesozóica, há 248-65 milhões de anos.
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Leia mais sobre o paleontólogo Alexander Kellner
e a proposta da coluna “Caçadores de Fósseis”.