A hidrocefalia fetal é uma doença congênita que acomete 1 em cada 1.500 recém-nascidos. A palavra tem origem grega (‘hidro’ significa água e ‘céfalo’, cabeça) e define um acúmulo anormal de líquido cefalorraquidiano no córtex cerebral.
Esse crescimento de volume promove o aumento da pressão intracraniana, inchaço do crânio, lesões no sistema nervoso e causa um grave prejuízo às funções cognitivas, motoras e sensoriais.
Não existe tratamento eficaz, e procedimentos paliativos incluem a drenagem do líquido cefalorraquidiano ou intervenções farmacológicas.
Quanto à origem da hidrocefalia fetal, há evidências de contribuição genética para algumas de suas formas raras, entretanto, a grande maioria dos casos é esporádica e de etiologia desconhecida. Diversos relatos científicos associam a doença a episódios de sangramento pré-natal.
Diante das incertezas, pesquisadores continuam buscando as causas para o desenvolvimento da enfermidade. Um artigo científico publicado em edição deste mês da revista Science Translational Medicine testou a seguinte hipótese: será que derivados de sangue resultante de uma hemorragia intracraniana poderiam causar a hidrocefalia fetal?
Agulha no palheiro
Em linhas gerais, podemos assumir que o sangue nada mais é do que uma mistura de hemácias, plasma e soro.
A primeira coisa que o grupo de Jerold Chun, do Instituto de Pesquisa Scripps da Califórnia (Estados Unidos), fez foi injetar cada um desses componentes – hemácias, plasma e soro – separadamente no interior dos ventrículos cerebrais de camundongos em desenvolvimento, ainda no útero materno. Os animais foram analisados antes e após o nascimento para evidências de hidrocefalia fetal.
A injeção de soro ou plasma induziu a geração da doença em metade dos animais. Esses camundongos passaram a apresentar cabeças aumentadas, ventrículos dilatados e córtex cerebral de menor espessura. Por outro lado, a injeção da solução de hemácias nada causou.
Mas o que exatamente, dentre tantas substâncias presentes no soro e plasma, poderia ocasionar a hidrocefalia fetal?
O ácido lisofosfatídico (LPA) é um forte candidato. Esse lipídeo, presente em abundância no sangue e também no cérebro em desenvolvimento, está envolvido em uma dezena de eventos metabólicos por meio da ativação de receptores celulares específicos.
Cabe mencionar que a concentração desse lipídeo no sangue é pelo menos cinco mil vezes superior à concentração média necessária para ativar os receptores presentes nas células-tronco neurais que irão formar o sistema nervoso. Ou seja, um sangramento expõe células-tronco neurais a quantidades de LPA capazes de interferir drasticamente na formação do cérebro.
Réu convicto
De fato, sabe-se desde 2003 que a exposição do cérebro em desenvolvimento a concentrações não fisiológicas de LPA afeta diretamente os progenitores neurais. Quando isso ocorre, o número de neurônios aumenta, fazendo com que cérebros de camundongos se assemelhem a cérebros humanos, com seus giros e sulcos.
Aqui, uma curiosidade. Nessa época, eu trabalhava no Instituto Scripps e assinei juntamente com Jerold Chun e colegas artigo científico mostrando esses resultados, publicado na revista Nature Neuroscience.
Jerold Chun e equipe tinham, portanto, um excelente candidato em mãos: um lipídeo abundante no sangue, capaz de afetar o desenvolvimento do cérebro. Nada mais natural do que testá-lo. E foi isso que fizeram.
Em vez de metade dos camundongos desenvolver hidrocefalia fetal – como no caso das injeções de plasma ou soro –, 100% dos animais apresentaram a doença após a injeção em seus ventrículos de uma solução contendo exclusivamente LPA.
Os autores também identificaram alterações histológicas semelhantes às observadas em pacientes com hidrocefalia, incluindo ventrículos dilatados e extravazamento de células para o interior dessas cavidades.
A presença anômala de aglomerados celulares foi detectada não somente nos ventrículos laterais, mas também no terceiro ventrículo. Essa heterotopia interfere na circulação do líquido cefalorraquidiano pelos ventrículos, contribuindo para o inchaço do crânio e outras características da doença.
Cortando relações
Os resultados da equipe da Califórnia indicam que a exposição a concentrações elevadas de LPA – como aquelas presentes no sangue – desestabiliza as junções que mantêm a integridade dos ventrículos, promove o deslocamento anormal de células para locais impróprios que, então, interrompem a circulação do líquido cefalorraquidiano, favorecendo o aumento de pressão intracraniana, crescimento anormal da caixa craniana etc.
Para confirmar essa hipótese, os autores se valeram de animais geneticamente modificados nos quais os genes que codificam os receptores de LPA foram eliminados. Quando esses animais foram expostos ao lipídeo, dessa vez nada aconteceu. Eles não apresentaram características da hidrocefalia fetal como anteriormente observado nos animais comuns.
O efeito do LPA na geração da doença nos camundongos observados era, portanto, dependente da ativação de seus receptores, presentes na membrana das células-tronco neurais que formariam o cérebro. Mas seria possível evitar a hidrocefalia nos animais comuns, que, assim como nós, apresentam os receptores para LPA em suas células neurais durante o desenvolvimento
Uma forma de se testar essa hipótese é com a utilização de um antagonista farmacológico capaz de impedir a ação do LPA em seus receptores. Quando a turma do Scripps injetou essa substância – conhecida pela sigla Ki16425 – no cérebro dos camundongos um pouco antes da exposição ao LPA, os animais ficaram protegidos e não mais desenvolveram a hidrocefalia.
Esses dados sugerem que uma intervenção farmacológica pontual, capaz de bloquear a ativação de receptores para LPA no cérebro em desenvolvimento, é capaz de impedir os efeitos nocivos de uma eventual hemorragia intracraniana ainda no útero.
Trabalhei por quase seis anos buscando entender a importância do LPA para a formação do cérebro. É, portanto, uma enorme satisfação acompanhar a evolução das pesquisas na área, que agora apontam para estratégias terapêuticas com potencial de evitar a evolução de uma condição tão debilitante quanto a hidrocefalia fetal, com consequências graves para a vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro