Lobo na pele de cordeiro?

Agricultores observam lavoura de milho geneticamente modificado para adquirir resistência a pragas no Quênia (foto: Dave Hoisington / CIMMYT / PLo

Atualmente produzimos mais comida do que em qualquer outro período de nossa história. O desenvolvimento de técnicas agrícolas apoiado em ferramentas biotecnológicas é um dos grandes responsáveis por essa elevada produtividade. Contudo, esse sucesso trouxe em contrapartida vários problemas, como o desmatamento destinado a alargar os limites da fronteira agrícola, o uso desmedido de inseticidas e herbicidas e, mais recentemente, o emprego de alimentos modificados geneticamente ou transgênicos.

Os opositores do uso desses alimentos se apóiam em inúmeros estudos que afirmam que uma alimentação saudável e adequadamente balanceada constitui uma arma poderosa contra o envelhecimento, o câncer e um sem-número de doenças. Nesse sentido, espécies modificadas geneticamente poderiam conter substâncias que representam riscos para nossa saúde.

Somos constantemente bombardeados por noticias de que os transgênicos poderiam também ser fonte de desequilíbrios ecológicos de conseqüências difíceis de prever e que podem levar a danos ambientais, à extinção de espécies ou mesmo ao surgimento de novos parasitas e patógenos. Até que ponto essas informações são procedentes?

Diversos cientistas argumentam que o uso de transgênicos representa um enorme passo em nossa compreensão a respeito dos mecanismos de herança genética e da biologia celular vegetal. Para eles, o uso criterioso de transgênicos representará uma revolução sem precedentes para a agricultura e, talvez, a chance de se assegurar alimentos para uma enorme parcela da população mundial desnutrida devido à carência de recursos alimentares.

Esses pesquisadores consideram que, se analisarmos de forma retrospectiva, o uso de alimentos transgênicos representa apenas mais uma das formas empregadas pela agricultura para selecionar, cultivar e propagar variedades vegetais que apresentem características desejáveis para o consumo humano. Por isso, o domínio das técnicas de cultivo de vegetais, surgido há cerca de 10 mil anos, é considerado pelos historiadores um momento crucial para o progresso humano, pois permitiu que nossos antepassados, ao se fixarem em certos locais, gerassem os primeiros núcleos populacionais.

Uma análise dos ancestrais de plantas amplamente cultivadas atualmente, como milho, batata e soja, indica que os antepassados dessas espécies apresentavam características muito diferentes em relação às variedades atuais. Espécimes selvagens de milho, por exemplo, não são empregados na agricultura, pois apresentam espigas com apenas cerca de 3-5 cm e com um enorme número de grãos diminutos.

Milênios de seleção genética

Diferentes cultivares de milho. Desde a domesticação dessa espécie, ocorrida há cerca de 9 mil anos no México, o melhoramento genético convencional permitiu a obtenção de variedades de milho com características desejadas (foto: Keith Weller / USDA).

Uma seleção empreendida durante milhares de anos assegurou que variedades com características atraentes – como uma maior produtividade e precocidade – fossem selecionadas para uso agrícola. Variedades naturais oriundas de mutações genéticas que apresentem menos compostos tóxicos e que sejam mais tenras foram também selecionadas desde os primórdios da agricultura.

Muito provavelmente, essas variedades frágeis não teriam sobrevivido à seleção natural ou mesmo teriam desaparecido se não fosse a dileta intervenção dos seres humanos. Esse processo faz com que consigamos, por exemplo, obter variedades tão diferentes quanto a couve, o repolho, a couve-flor e o brócolis selecionados a partir de uma única espécie vegetal (Brassica oleracea). Todos esses vegetais possuem, portanto, um patrimônio genético comum, expresso em 18 cromossomos. As enormes diferenças fenotípicas observadas devem-se apenas a mutações em alguns poucos genes.

Atualmente, cada forma de uma planta (cultivar) com um dado genótipo e fenótipo selecionado por meio do cultivo é chamada por um nome único, registrado com base em suas características produtivas, decorativas ou outras que o tornem interessante para cultivo. O cultivar deve sempre manter um conjunto único de características que o distingam de maneira consistente de plantas semelhantes da mesma espécie.

A domesticação do milho e de outras espécies agrícolas tem se intensificado nos últimos anos com o desenvolvimento da agroindústria capitalista. Variedades que apresentem de maneira uniforme características específicas são preferencialmente selecionadas para cultivo. Dessa forma, assegura-se um maior rendimento ao agricultor e uma maior facilidade para a colheita.

Nesses dez mil anos, os cultivos agrícolas passaram, então, de uma iniciativa que alimentava uma ou poucas famílias para um empreendimento destinado a nutrir nações inteiras. Entretanto, esse desenvolvimento da agricultura trouxe consigo uma série de desafios a serem superados. Dois dos principais problemas enfrentados pela agricultura moderna são as pragas agrícolas e as ervas daninhas que competem com os cultivos agrícolas por nutrientes. A escassez (ou mesmo ausência) de variabilidade genética dos cultivos agrícolas torna o combate a esses problemas mais complexo.

Métodos tradicionais de seleção de variedades vegetais para o uso agrícola trabalham com cruzamentos programados de exemplares que apresentam as características desejadas. Esse método, porém, é lento e muito pouco eficaz, pois lida com o genoma total da espécie de interesse. Além disso, corre-se o risco de se selecionar de forma aleatória características indesejadas juntamente com aquelas de interesse.

DNA recombinante
O desenvolvimento na década de 1970 da tecnologia do DNA recombinante, um grupo de técnicas de biologia molecular para o isolamento, modificação e transferência de genes, abriu novas possibilidades para a agricultura, pois tornou possível a transferência de genes de interesse entre plantas diferentes ou, alternativamente, a inativação de genes específicos em uma espécie vegetal.

Esses processos de biotecnologia procuram imitar a transferência de genes que ocorre naturalmente entre espécies vegetais. Esse mecanismo, conhecido como transferência horizontal de genes, tem sido amplamente detectado por investigações genéticas realizadas inclusive em espécies agrícolas como o arroz e o milho. Os responsáveis por essa transferência são elementos genéticos móveis conhecidos como transposons e retrotransposons que se deslocam naturalmente entre locais diferentes de um genoma ou mesmo entre genomas diferentes.

Bactérias Agrobacterium tumefaciens aderem a células vegetais. Essas bactérias são muito usadas para a transferência de genes entre diferentes espécies (foto: Martha Hawes / Univ. do Arizona).

Acredita-se que esses elementos genéticos móveis sejam essenciais para as modificações dinâmicas surgidas nos cromossomos durante a evolução e, por isso, representem uma fração considerável do DNA de muitas espécies vegetais. Diversas formas híbridas surgidas entre espécies diferentes são formados a partir da transferência de elementos genéticos móveis e grupos de genes vegetais muitas vezes associados aos transposons e retrotransposons.

Atualmente, as plantas transgênicas são costumeiramente geradas em laboratório pela adição de um ou mais genes ao seu genoma por um bombardeio de suas células com partículas de ouro contendo os genes de interesse ou por infecção por uma espécie de bactéria do solo conhecida como Agrobacterium tumefaciens. Essa bactéria possui em seu interior pequenas moléculas circulares de DNA conhecidas como plasmídeos, nas quais podem ser introduzidos, por meio de técnicas de biologia molecular, genes de interesse que são incorporados ao genoma da planta em questão.

Os primeiros êxitos dessa tecnologia foram obtidos em 1987, após a introdução de genes de resistência contra enfermidades no tomateiro. No ano seguinte se criou a primeira planta resistente a agressões de insetos e, logo depois, as primeiras variedades resistentes a herbicidas. Porém, as primeiras sementes só chegaram às mãos dos agricultores anos mais tarde, após terem sido testadas em laboratório e em cultivos controlados.

Como resultado do emprego desses métodos de transferência de genes entre espécies vegetais, foi possível gerar cultivos agrícolas muito mais produtivos e que apresentam um desenvolvimento uniforme nas diversas etapas do ciclo de vida vegetal. Além disso, essa tecnologia eliminou o uso de cerca de 20-40% de inseticidas e herbicidas no meio agrícola e tornou possível inserir nutrientes essenciais como proteínas e as vitaminas A e E e ferro em plantas cultivadas para consumo da população.

Oposição aos transgênicos
O emprego de cultivos transgênicos foi imediato em diversos países e hoje existem formas geneticamente modificadas para diversas espécies, como milho, soja, tomate ou algodão, que ocupam em conjunto centenas de milhões de hectares agrícolas. Contudo, existem setores da sociedade que não aceitam a utilização de organismos geneticamente modificados na alimentação humana.

Os opositores dessa tecnologia questionam se os alimentos transgênicos podem representar um risco de contaminação ambiental e exigem estudos para determinar se as plantas transgênicas são capazes de se desenvolver fora dos locais em que são cultivadas, se podem compartilhar genes com outras espécies vegetais ou até animais e se essas espécies podem formar híbridos com espécies selvagens.

Cultivo experimental feito na Agência de Proteção ao Meio-ambiente, que avalia os riscos ligados a alimentos geneticamente modificados nos Estados Unidos (foto: EPA).

Os críticos do uso dos transgênicos também exigem que sejam desenvolvidos estudos para se avaliar as interações desses alimentos com o organismo humano e a relação do consumo de transgênicos com a ocorrência de doenças como o câncer, a obesidade e problemas cardiovasculares.

Sem dúvidas, os estudos sobre os possíveis impactos do uso de alimentos transgênicos sobre o ambiente e nossa saúde são algo necessário e urgente. Qualquer possibilidade de que esses produtos venham a causar problemas deve de ser investigada a fundo antes que eles sejam liberados para o consumo humano. Além disso, deve ser criada uma legislação criteriosa e rígida que defina os limites éticos de pesquisas na área e que permita o uso de alimentos transgênicos somente após se ter certeza que esses não representam perigos para a saúde humana ou para o meio ambiente e que puna rigorosamente infrações às regras impostas.

Isso, porém, não diminui os enormes benefícios reais e atuais que o uso dessa tecnologia representa para a humanidade. Essa técnica permite a criação de cultivos mais resistentes contra pragas e a conservação das propriedades nutricionais dos alimentos por mais tempo. Além disso, ela abriu a possibilidade de se produzirem alimentos que carreguem dentro de si nutrientes, hormônios e outros elementos essenciais para a nossa saúde e de se cultivarem plantas capazes de captar com mais eficiência os nutrientes do solo, diminuindo o impacto ambiental causado por fertilizantes agrícolas.

Todos essas inovações obtidas pelo cultivo de transgênicos – desde que utilizadas de forma ética e responsável – podem representar um passo enorme para uma melhor qualidade de vida para toda a humanidade e riscos menores para a natureza de nosso planeta.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
21/12/2007

SUGESTÕES PARA LEITURA
Andow, D.A., Zwahlen, C. (2006). Assessing environmental risks of transgenic plants. Ecol. Lett. 9, 196-214.
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