Mendel: o anti-herói

 
Recentemente, assistindo a um programa do jornalista americano Charlie Rose sobre Charles Darwin, no qual ele entrevista os famosos geneticistas americanos James Watson (leia-se “estrutura do DNA”) e Edward O. Wilson (leia-se “sociobiologia”), ouvi o seguinte diálogo:

Wilson: “Gostaria de sugerir que, daqui a 500 anos, talvez daqui a 1000 anos, haverá dois marcos principais da origem da biologia moderna: a Origem das espécies de 1859 e o artigo de 1953 demonstrando a estrutura do DNA, por Watson e Crick.”
Watson: “Não quero soar modesto, mas eu adicionaria um terceiro, que é o de Mendel em 1865.”
Wilson: [veementemente]: “Discordo!”

Gregor Mendel (1822-1884) nasceu pobre na Europa Central e passou a maior parte de sua vida em um monastério na Morávia. Sua carreira foi totalmente desprovida de traços heróicos.

Por que Gregor Mendel (1822-1884) não seria considerado uma figura da mesma estatura científica de Darwin? Eis um prato cheio para os historiadores da ciência. Minha opinião é que, simplesmente, faltava-lhe carisma. Seu arco de vida não é aquele do herói mítico que discutimos em janeiro – pelo contrário, atrevo-me a dizer que Mendel é um anti-herói trágico. Uso aqui a expressão “anti-herói” no mesmo significado do Dicionário Houaiss que o define como “oposto do herói, especialmente personagem de ficção a quem faltam atributos físicos e/ou morais característicos do herói clássico”.

Sou fã de carteirinha do Mendel. Basta ler o seu artigo de 1865 intitulado “ Experimentos sobre a hibridização das plantas ” para sentir um intelecto poderoso em ação, brilhante no planejamento detalhado dos experimentos, na análise cuidadosa dos dados e na interpretação disciplinada dos resultados. O trabalho é um triunfo do método científico, com doses equilibradas de inspiração e perspiração!

A conclusão da pesquisa de Mendel – contra-intuitiva para a época, mas cogente, inevitável e irrefutável – foi que a transmissão de caracteres hereditários ocorria de maneira particulada, quântica, descontínua, por meio dos “genes” (que só viriam a receber este nome em 1906). Certamente ele descrevia um mecanismo biológico de singular beleza e de uma simplicidade franciscana (no caso de Mendel poderíamos também dizer de uma transcendência agostiniana, já que esta era a sua ordem religiosa).

Assim como a gravitação newtoniana basta para explicar a mecânica celeste e a seleção natural darwiniana basta para explicar a evolução da vida na Terra, a herança “particulada” de Mendel basta para explicar a hereditariedade genética. E tudo isso contido em um texto espartano, científico, factual, matemático. Como disse São Jerônimo (342?-420), responsável pela Vulgata , a primeira tradução da Bíblia para o latim: venerationi mihi semper fuit non verbosa rusticitas, sed sancta simplicitas (“Sempre reverenciei não a rústica verbosidade, mas a santa simplicidade”). Não resisto aqui à tentação de lembrar que o alter ego do cultíssimo São Jerônimo no sincretismo afro-brasileiro é o poderoso Xangô. Saravá!

Feio, pobre e mora longe
Quando eu era criança, era comum descrever um indivíduo sem grandes qualidades aparentes com a expressão “é feio, pobre, tem pé grande e mora longe”. Não sei quanto Mendel calçava, mas certamente ele preenchia todos os outros requisitos.

Em uma cápsula: Mendel nasceu na Silésia, na Europa Central, muito longe de Londres, Paris, Berlim e Viena, os grandes centros científicos da época. Sua família era de modestos agricultores. Foi batizado como Johann, nome trocado mais tarde por Gregor, ao entrar em 1843 para a Abadia Agostiniana de São Tomás em Brünn (hoje na República Tcheca, mas na época parte do Império Austro-Húngaro). Sua vocação religiosa é questionável – no século 19, a única opção viável para um jovem pobre que quisesse seguir uma carreira “científica” era o ingresso em um convento. Em 1851 o monge Gregor foi enviado para cursar a Universidade de Viena. Retornou em 1853 como professor de física, acumulando as funções de hortelão e jardineiro da abadia.

O primeiro laboratório de genética! Jardim de Mendel em foto de 1920.

Entre 1856 e 1863 Mendel conduziu experimentos de hibridização genética na ervilha Pisum sativum (e em abelhas), analisando mais de 28 mil plantas. Em 8 de fevereiro e 8 de março de 1865, teve oportunidades de apresentar seus resultados na Sociedade dos Naturalistas de Brünn e o texto foi publicado no ano seguinte (mas com data de 1865) nos Anais da Sociedade. Eleito abade logo depois, Mendel ficou absorvido com tarefas administrativas e brigas com o governo a respeito de impostos, praticamente abrindo mão de seus interesses científicos. Permaneceu no mosteiro até sua morte em 1884, aos 61 anos.

 

Certamente o charme dessa biografia é zero! A menos que fizesse um esforço para ler cuidadosamente o trabalho de Mendel, ninguém conseguiria apreciar a magnitude de seu gênio. Mas por que fazer esse esforço? Quem imaginaria que os segredos mais fundamentais da biologia estariam contidos em um artigo em alemão com o título insípido e hermético de “Experimentos sobre a hibridização das plantas”?

 

Ignorado em vida como grande cientista, Mendel sofreu ainda uma campanha de difamação após a festiva e explosiva redescoberta de seus trabalhos em 1900. As acusações de que os seus resultados eram “bons demais” para serem verdadeiros poderiam ter passado despercebidas, não fosse o fato de o coro dos maledicentes ser liderado pelo legendário Sir Ronald A. Fisher (1890-1982), um dos pais da estatística e da genética de populações, importante figura da ciência inglesa no século 20.

 

Sete caracteres, sete cromossomos

 

Dois aspectos do trabalho de Mendel foram destacados por Fisher e outros críticos como altamente suspeitos: o número e natureza de caracteres que ele estudou e as proporções fenotípicas observadas em seus experimentos. Com relação aos primeiros, Mendel examinou sete caracteres diferentes e observou segregação independente entre eles.

 

Antes de continuar, vale a pena lembrar que o genoma da ervilha Pisum sativumtem sete cromossomos. Seria uma coincidência extraordinária Mendel ter escolhido a priorisete características fenotípicas unilocais, todas localizadas em cromossomos diferentes, o que lhes garantiria segregação independente. Com base neste raciocínio, alguns sugeriram então que o mais provável era que Mendel tivesse trabalhado com um número maior de caracteres e descartado os que apresentaram distorções de segregação por estarem presentes no mesmo cromossomo e ligados. Assim, começaram a soprar as brisas da calúnia que tendem a crescer e a se transformar em furacões (estou a pensar aqui na deliciosa ária La calunnia è un venticello, da ópera Barbeiro de Sevilha, de Rossini).

 

Para mim, essas dúvidas foram muito bem resolvidas em uma carta publicada no periódico Nature em 1975 por Stig Blix, um geneticista sueco que naquela época estava trabalhando em Piracicaba (SP), no Centro de Energia Nuclear na Agricultura. Blix mostrou que, dos sete caracteres estudados por Mendel, dois estavam no cromossomo 1, três no cromossomo 4, um no 5 e outro no 7.

 

Por que, então, não houve distorções ocasionadas pela ligação? Segundo Blix, os dois genes no cromossomo 1 e dois dos três no cromossomo 4 estão tão distantes um do outro que se segregam independentemente. Apenas um dos pares poderia ter apresentado ligação, mas aparentemente Mendel nunca estudou a segregação deles. Assim, a meu ver, Mendel fica completamente inocentado da primeira acusação de fraude.

 

O paradoxo do “bom demais”

 

Exemplar dos Anais da Sociedade de Naturalistas de Brünn com a o artigo de Mendel. Havia uma cópia dessa revista na biblioteca de Darwin, mas o artigo de Mendel ainda estava com as páginas pristinamente fechadas, o que demonstra que não havia sido lido.

Sir Ronald A. Fisher analisou os dados combinados de Mendel usando um teste estatístico chamado qui-quadrado e achou que eles eram ajustados demais, ou seja, era extremamente improvável que Mendel tivesse encontrado aqueles resultados puramente ao acaso. Em 1937 ele publicou um artigo concluindo que Mendel, ou algum assistente, havia falsificado os dados. Considerando-se a importância e influência de Fisher, não é surpresa que essa acusação tenha se difundido pela comunidade genética, sendo mesmo mencionada em vários livros-texto até hoje.

 

Entretanto, como demonstrado em 1984 por Ira Pilgrim em um breve artigo , o grande matemático inglês cometera um erro lógico! Fisher havia incorrido em uma versão estatística da falácia ex-post-facto

, que consiste em se conscientizar sobre a baixa probabilidade de um evento depois de ele ter ocorrido e a partir daí fazer inferências retrospectivas sobre suas possíveis causas!

 

Por exemplo, imagine que você esteja em uma roda de pôquer e alguém receba “de cara” um royal straight flush(10-J-Q-K-A de um mesmo naipe). Imediatamente você se levanta e declara: a probabilidade de isto ocorrer é de apenas 0,0000015, portanto deve ter havido fraude! Esse comportamento seria extremamente ilógico, para não dizer antiesportivo. Cada jogador recebe um conjunto de cartas e qualquer conjunto de cartas específico é igualmente improvável a priori!

 

A probabilidade de um bilhete específico ser premiado na Loteria Federal também é baixíssima, e mesmo assim toda semana um bilhete é premiado! Você não pode acusar o ganhador da loteria de desonestidade só pela baixa probabilidade inicial de seu bilhete vir a ser sorteado! De novo as acusações contra Mendel caem por terra.

 

Uma versão bastante comum desta mesma falácia ex-post-factorefere-se à baixíssima probabilidade da emergência espontânea da vida na Terra e de sua evolução por mecanismos naturais até o aparecimento do Homo sapiens. Postula-se, então, a existência de uma deidade que tenha dirigido o processo. Esse tipo de argumento falacioso é freqüentemente invocado contra a teoria da evolução, o que nos leva de volta a Darwin.

 

Mendel e Darwin
Mendel era grande admirador de Darwin e leu praticamente toda a sua obra. Ainda há na biblioteca do mosteiro de Brünn uma cópia da  Origem das espécies (segunda edição, em alemão, de 1863) cheia de anotações marginais feitas por Mendel. Por outro lado, não existe evidência de que Darwin sequer soubesse da existência de Mendel. O exemplar dos Anais da Sociedade de Naturalistas de Brünn

que continha o artigo “Experimentos sobre a hibridização das plantas” de Mendel foi encontrado na biblioteca de Darwin após a sua morte, mas as folhas duplas típicas das publicações antigas (que vinham fechadas e precisavam ser cortadas com uma espátula) não haviam nem sido abertas para leitura…

Sergio Danilo Pena

Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia

Universidade Federal de Minas Gerais

09/03/2007