A pretexto de incluir todos os gêneros, o colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, passou a adotar, em comunicados oficiais, uma grafia que elimina Os e As em palavras como “alunos” e “alunas”, substituindo essas letras por X: “alunxs”. A opção faz parte de uma pletora de casos em que se pretende corrigir aspectos da língua e de textos, supostamente por serem ofensivos, excludentes ou inexatos.
Na categoria nos inexatos está, por exemplo, a intervenção (basicamente da Rede Globo, mas que pegou) visando corrigir a expressão “risco de vida” por “risco de morte”. A ideia é que risco para a vida não é risco de vida, que significaria risco de viver.
A análise da expressão, sem considerar seu domínio semântico mais amplo, corre o risco de ser falsa. No mínimo, deveriam ser levadas em conta construções como “arriscar a vida”, que significa ‘correr risco de perder a vida’ (análoga a “arriscar o salário nos cavalos”, que significa, evidentemente, ‘correr risco de perder o salário…’). É o que se pode ver nos bons dicionários (Houaiss registra “arriscar: expor a risco ou perigo”) e mesmo em outras línguas (como risquer la vie, em francês, cf. Petit Larousse). Em suma: ninguém arrisca a morte, ninguém arrisca perder o que não tem. Por isso, só se corre risco de vida.
Outras correções são tão ou mais bobas que esta. Por exemplo, “quem tem boca vaia Roma”, por “vai a Roma”; “batatinha quando nasce, põe a rama pelo chão” por “se esparrama pelo chão”; “matar a cobra mostrar a cobra”, em vez de “mostrar o pau” etc.
Sabe-se que as línguas mudam. Em geral, fazem isso seguindo forças mais ou menos ‘ocultas’. Políticas linguísticas dificilmente interferem em questões como o sentido das palavras ou de textos, pequenos ou grandes. Elas podem registrar, inibir ou incentivar. Mas não criam nem desfazem fatos.
Os casos acima mencionados podem ser considerados, além de tudo, erros de análise. Provérbios não são literais: “quem tem boca vai a Roma” significa que, perguntando, pode-se chegar a qualquer lugar (não se trata de boca, mas de fala, nem de Roma, mas de qualquer lugar).
Questão de gênero
A norma do colégio D. Pedro II é do mesmo tipo: propõe uma escrita artificial (não foi inventada no colégio) que evitaria discriminação. A solução tem vários problemas, a despeito das boas intenções – o inferno, como se sabe…
A primeira questão, obviamente, é como ler estas palavras (nem preciso explicar o problema). Ou se quer que sejam apenas vistas ou lidas em voz baixa (como alun@s)?
Já o problema de fundo é a própria questão de gênero, ou seja, a relação biunívoca que haveria entre gênero gramatical e gênero social (o antigo sexo). É fácil ver que nem sempre esta relação se mantém. ‘Lua’, ‘cisterna’, ‘arte’, ‘galho’, ‘intelecto’, e acho que também ‘anjo’, nada têm nada a ver com sexo. A questão só se torna potencialmente problemática quando se trata de humanos. Mas considere ‘criança’…
No entanto, animais podem servir como passagem de um extremo a outro. Quando dizemos “bois”, discriminamos as vacas? É sexismo falar ‘dos’ tigres de Bengala e ‘dos’ ursos polares? Acho complicado.
É comum que se fale de animais genericamente por meio da palavra gramaticalmente masculina: (carne de) porco, (asa de) frango, (costela de) boi etc.
Quando se trata de humanos (as mulheres são humanas, nesta versão do politicamente correto?), em certa medida, a questão é a mesma: a palavra gramaticalmente masculina designa o gênero (no sentido relacionado a espécie); a palavra feminina designa uma parte, uma parte específica. “Os alunos devem…” refere-se a todos os discentes; “as alunas devem”, só às discentes do sexo feminino. O problema não são as formas “alunos” e “alunas”, mas o que se diz que devem…
Uma coisa é lutar para que certas palavras marcadas negativamente sejam trocadas por outras, mais amigáveis. Outra é querer resolver o problema no interior da gramática.
Palavras marcam certas culturas. Eventualmente, culturas definem seu gênero: ‘arte’ é feminino em português (a arte), masculino em espanhol (el arte). Não é fácil sustentar que, em um caso, se trata de feminino ou de masculino para além do gênero gramatical. É um fato neutro, provavelmente, quanto a qualquer laivo de sexismo.
Mas a tese a ser levada em conta é a de John Martin. Se o leitor digitar o nome do linguista e a palavra “gênero”, encontrará seu célebre (entre alguns linguistas) artigo chamado justamente “Gênero?” . Tem quatro páginas e deveria provocar uma revolução.
Sua tese é que não há masculino e feminino em português, mas apenas palavras marcadas e não marcadas quanto ao gênero. O que impressiona em sua breve e certeira argumentação é que se usam formas masculinas tanto relacionadas a nomes não femininos (“Pedro é alto”) quanto em todos os casos em que não há nome com o qual relacionar, por exemplo, um predicado:
“navegar é preciso” (nunca ‘precisa’)
“aqui faz frio” (nunca ‘fria’)
“aqui é bom” (nunca ‘boa’)
Que não se diga que “navegar” é masculino. Por favor. Uma boa causa, como o feminismo e a igualdade de gêneros, merece argumentos melhores.
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas