Em meu curso de graduação em biologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) havia um professor de zoologia que dava a todos os interessados uma planária de estimação em um vidrinho com água. A maioria dos alunos levava esse verme platelminto de grandes olhos tristes para casa e, de vez em quando, o alimentava com um pedacinho de carne. Porém, algumas pessoas não se satisfaziam apenas em impressionar seus amigos com seu animal exótico e o submetiam a experimentos que fariam inveja ao carrasco nazista Josef Mengele: cortavam pedaços de sua planária e, após alguns dias, observavam que o animalzinho se regenerava e assumia formas bizarras, ou seccionavam totalmente o corpo do verme para gerar duas novas planárias!
Fotos de uma planária (A) e alguns animais bizarros gerados após a regeneração desse verme platelminto (B). Foto: UCLA.
Você provavelmente nunca viu uma planária. Esses pequenos animais levam suas vidas felizes longe de nossas vistas em algum brejo. Mas quase toda criança algum dia já se maravilhou ao encontrar uma cauda de lagartixa agitando-se após ter sido deixada para trás enquanto esse réptil fugia e, algum tempo depois, ao ver o mesmo animal com uma cauda nova em folha!
Quase todos os seres vivos possuem essa capacidade regenerativa, embora de forma limitada. Os seres humanos, por exemplo, conseguem regenerar até 2/3 de seu fígado quando necessário. Porém, nenhum vertebrado é capaz de empreender as maravilhas que seres como as planárias podem realizar. Thomas Hunt Morgan (1866-1945), um dos pais da genética, mostrou que um fragmento equivalente a 1/297 do corpo desses vermes – com cerca de 10 mil células – pode regenerar o animal integralmente. Essa capacidade regenerativa deve-se à presença, no corpo desses platelmintos, de células-tronco totipotentes denominadas neoblastos, que podem, quando necessário, gerar todos os outros tipos celulares do animal.
O processo de regeneração pode ocorrer por meio da reorganização dos tecidos existentes e de seus limites (morfalaxia) ou da reconstituição das partes perdidas a partir de células presentes em tecidos pré-existentes (epimorfose). A morfolaxia é mais comum e ocorre em diversos animais, como as estrelas do mar e as hidras. A epimorfose, por ser um processo mais complexo, é mais rara. As planárias são os únicos animais com simetria bilateral (com apenas um plano imaginário que divide o corpo em duas metades iguais) capazes de sofrer epimorfose.
Um dos objetivos atuais da pesquisa sobre regeneração de planárias é descobrir como um pequeno amontoado de células retiradas de um verme é capaz de gerar corretamente um animal inteiro. Aparentemente, existem diferenças entre células localizadas em regiões distintas do organismo desses vermes que ‘indicam’ ao animalzinho como remontar corretamente seu corpo. A identidade e o mecanismo de ação desses sinais são um mistério ainda.
Etapas da regeneração da cabeça de uma planária. Os números indicam os dias após a remoção da cabeça. As células-tronco conhecidas como neoblastos (mais claras) podem ser vistas na região regenerada (Fonte: Salo, 2006, BioEssays , 28:546-559).
Quando o corpo de uma planária é seccionado, observa-se, durante as primeiras horas, uma cicatrização do local afetado, devido à remodelagem dos tecidos (morfalaxia), aliada à ocorrência de grande número de mitoses (divisão celular que gera duas células idênticas à original) e à migração dos neoblastos. Algumas células dessa região podem sofrer um processo de desdiferenciação e se tornar novamente totipotentes para conseguir repovoar o local afetado.
Nesse local, forma-se um tecido de regeneração conhecido como blastema. Células presentes no blastema diferenciam-se e geram novamente os diversos tipos celulares do animal. Durante a fase final do processo de regeneração, ocorre um ajustamento das estruturas formadas por meio da proliferação e diferenciação celulares. Nessa região, também se observa a eliminação de células desnecessárias através de apopotse – o processo de morte celular programada.
Apesar da grande capacidade proliferativa dos neoblastos, as planárias apresentam níveis muito baixos de câncer. Por isso, a compreensão dos mecanismos que inibem o surgimento de neoplasias nesses seres pode gerar terapias para combater essa patologia nos seres humanos. Além disso, compreender como o sistema nervoso desses animaizinhos é capaz de se regenerar em poucos dias pode nos auxiliar no combate a doenças degenerativas como os males de Parkinson e Alzheimer.
Jerry Carvalho Borges
Universidade do Texas em San Antonio
(pós-doutorando)
16/06/2006