O estudo das doenças do cérebro humano é fascinante, porém extremamente desafiador.
O neurocientista tem as seguintes opções: 1) analisar o tecido nervoso de pessoas já falecidas, material difícil de ser obtido e que representa na maioria das vezes estágios terminais das neuropatologias; 2) usar animais de experimentação, que, apesar de extremamente úteis, em muitos casos são incapazes de reproduzir várias das características dessas doenças; 3) utilizar células do sangue de pacientes acometidos por doenças neurodegenerativas ou demências. Neste último caso, apesar de essas células ajudarem na identificação de marcadores genéticos dessas patologias, a maioria das características metabólicas de doenças que acometem o cérebro não necessariamente é observada fora dele.
A reprogramação celular, técnica desenvolvida originalmente no Japão e reproduzida em alguns países, inclusive o Brasil, vem se destacando como ferramenta sem precedentes para a modelagem experimental de doenças humanas, complementando o que já aprendemos com os cérebros pós-mortem, animais de experimentação ou células sanguíneas dos pacientes.
Como já discutido em outras oportunidades aqui mesmo nesta coluna, as células-tronco de pluripotência induzida (conhecidas pela sigla iPS), obtidas por meio dessa técnica, podem ser geradas a partir de fragmentos da pele de seres humanos.
Desses fragmentos, são extraídos fibroblastos que, expostos a vírus modificados, que carregam genes idênticos àqueles presentes em células-tronco embrionárias, adquirem uma capacidade (chamada pluripotência) de se transformar em qualquer outro tipo celular do corpo humano.
Ao conseguir criar células especializadas de diferentes órgãos a partir de um punhado de pele, os cientistas são capazes de aprender sobre os estágios iniciais das doenças humanas e também identificar novos medicamentos que poderão ser aplicados de forma customizada em cada paciente. É a medicina personalizada, bebê!
Nos últimos anos, diversas doenças vêm sendo modeladas em laboratório pela técnica de reprogramação celular. Especificamente no caso do sistema nervoso, as doenças já estudadas incluem esclerose lateral amiotrófica, atrofia muscular espinhal, disautomia familiar, autismo, síndrome do X frágil e esquizofrenia.
Nesta semana, pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA), criaram células iPS para estudar também a doença de Alzheimer.
Mecanismos por trás da patologia
A doença de Alzheimer é uma doença neurodegenerativa incapacitante caracterizada pelo aumento da presença de placas beta-amiloides (tipo de depósito de proteínas) e emaranhados neurofibrilares (agregações intracelulares de certa proteína) nos cérebros dos pacientes.
No Brasil, estima-se que haja mais de 1 milhão de pessoas com Alzheimer. O aumento nos casos dessa demência incapacitante está associado ao aumento da expectativa de vida em todo o mundo. Atualmente, essa é a principal forma de demência em pessoas com mais de 60 anos.
Embora a grande maioria dos casos de Alzheimer seja esporádico, os principais avanços no conhecimento sobre os mecanismos dessa neuropatologia surgiram a partir do estudo de casos familiares da doença, herdados.
Nesse novo estudo publicado na revista Nature, o grupo liderado por Larry Goldstein reprogramou fibroblastos extraídos da pele de quatro pacientes com Alzheimer – dois com a forma esporádica da doença e outros dois com a forma familiar –, e de duas pessoas sem a doença (controles). As células iPS reprogramadas foram diferenciadas em neurônios.
Primeiramente, os autores confirmaram o aumento dos três grandes marcadores bioquímicos da doença de Alzheimer nos neurônios dos pacientes quando comparados aos dos controles.
Esses neurônios, diferenciados a partir das células iPS dos pacientes, foram então tratados com inibidores de beta-secretase, enzima envolvida na formação das placas amiloides. Além de reduzir a produção dos peptídeos beta-amiloides que formam as placas, a inibição dessa enzima foi capaz de fazer o mesmo com a proteína que forma os emaranhados neurofibrilares.
Até então, qualquer relação entre a formação das placas e dos emaranhados era desconhecida. Esse experimento revelou, pela primeira vez, que a via de processamento da proteína precursora de amiloide tem uma relação causal e direta com a formação dos emaranhados neurofibrilares em neurônios humanos.
Resultados questionáveis?
Um questionamento à relevância desses resultados está na diferença “de idade” entre os neurônios criados a partir das células iPS e os neurônios localizados no cérebro dos pacientes, cuja faixa etária variou entre 51 e 83 anos. Neurônios gerados em três semanas seriam comparáveis a neurônios com décadas de vida?
Enquanto há um debate sobre quando as características celulares da doença de Alzheimer começam a surgir, há evidências de que essa doença pode ocorrer em fetos com síndrome de Down de 28 semanas. Portanto, a relação causal entre formação de placas e emaranhados observada nos neurônios é provavelmente real. Mas não há outra forma de comprová-la que não seja por meio de células iPS.
Os resultados desse estudo indicam que a técnica de reprogramação celular, combinada ao conhecimento gerado a partir dos estudos com cérebros pós-mortem e modelos animais, poderá contribuir para o entendimento da patogênese precoce e da resposta a medicamentos em pacientes com as formas esporádica e familiar da doença de Alzheimer.
Não é por acaso que esse trabalho foi realizado na Califórnia. O investimento em pesquisas sobre células-tronco e a concentração de cientistas especializados no tema fazem com que a geração de conhecimento naquele estado norte-americano seja 20 vezes superior à produção científica sobre o mesmo assunto realizada em todo o Brasil.
Pesquisadores do estado da Califórnia já publicaram mais de mil artigos sobre células-tronco embrionárias e/ou iPS nos últimos 30 anos, enquanto no mesmo período foram publicados menos de cinquenta trabalhos científicos sobre esses assuntos no Brasil.
A medicina personalizada é baseada na proposta do desenvolvimento de medicamentos específicos para o tratamento individualizado de cada paciente, com maior eficácia e sem efeitos colaterais. Essa revolução na área da saúde passará impreterivelmente pela utilização da reprogramação celular e geração de células iPS.
A integração entre a pesquisa básica e a clínica, ou, em outras palavras, o diálogo constante entre pesquisadores e médicos, é imprescindível para o sucesso dessa proposta, assim como a continuidade e o aumento de investimentos em pesquisas sobre células-tronco e reprogramação celular no Brasil.
A revolução já começou, pelo menos na Califórnia.
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
O estudo divulgado nesta coluna foi feito por pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego, e não por cientistas do Instituto de Pesquisas Salk, da Califórnia, como mencionado anteriormente. (30/01/2012)