Movendo as engrenagens da vida

A sugestão de que nossa espécie compartilhou ancestrais relativamente recentes com os símios, lançada por Charles Darwin no século 19, causou enorme alvoroço na época. Muitos contemporâneos do naturalista não admitiam a existência de parentesco entre humanos e chimpanzés (imagens: Wikimedia Commons).

A evolução é um processo contínuo e incessante que afeta todos os organismos vivos. Mutações no material genético acumulam-se ao longo de gerações e levam a modificações na morfologia, na fisiologia e no comportamento dos organismos.

A ocorrência desse processo só começou a ser compreendida pela ciência e aceita pela sociedade na segunda metade do século 19. A sugestão de que nossa espécie compartilhou ancestrais comuns relativamente recentes com os símios, por exemplo, causou um enorme alvoroço quando foi lançada por Charles Darwin (1809-1882) e, de certa forma, obscureceu e tirou do foco das discussões sua brilhante teoria evolutiva.

Muitos contemporâneos de Darwin não admitiam a existência de um parentesco dos humanos com os chimpanzés – uma espécie desprovida da linguagem articulada e do pensamento abstrato, apesar da semelhança física com o Homo sapiens. Hoje, porém, a genética mostrou que homens e chimpanzés compartilham mais de 99% de seu genoma.

Outro problema relacionado com a aceitação da evolução é que muitos têm bastante dificuldade para entender que esse é um processo constante, que está em ação neste exato momento, sobre os humanos e demais seres vivos. Muitos ainda vêem o processo evolutivo como responsável pela existência de imensas criaturas extintas como os dinossauros, mas se esquecem que, para realizar tal proeza, foram necessários milhões de anos.

Por esse motivo, temos dificuldades em entender que o Homo sapiens não é uma espécie acabada e tampouco o ponto final da cadeia evolutiva, mas está em constante evolução. Para que isso ocorra, é necessária a presença de variações genéticas e a ocorrência de um processo de seleção que, ao agir sobre indivíduos com patrimônio genético diferente, afeta sua capacidade de propagar seus genes para as gerações futuras, um processo conhecido entre os geneticistas como fitness ou aptidão.

Diversidade genética
A espécie humana é riquíssima em variação genética, e as diferenças na aparência das pessoas são apenas parte dessa variabilidade. Acredita-se que existam cerca de 10 milhões de pares de base do código genético que diferem entre humanos. Além disso, uma nova dose de variabilidade é adicionada a cada geração na forma de mutações.

Toda essa variabilidade constitui um imenso campo de ação para a seleção natural. Algumas versões de genes (alelos) têm um impacto negativo sobre a aptidão dos indivíduos e fazem com que seus portadores tenham uma prole menos numerosa nas gerações seguintes. Outras, porém, têm um impacto positivo e tornam seus portadores proporcionalmente mais bem representados nas gerações futuras. Em muitos casos, esses alelos se transformam virtualmente na única forma gênica presente em uma dada população (um processo conhecido como fixação).

Por que, então, as mutações ruins não são totalmente eliminadas enquanto aquelas que proporcionam vantagens são fixadas? Uma das razões é que a aptidão se modifica à medida que ocorrem mudanças no ambiente. Assim, a “melhor” versão de um gene atual pode ser diferente da que existia há 100 mil anos ou da que existirá daqui a 50 anos. O alelo que representa maior vantagem para a aptidão de um indivíduo também pode variar de um local para outro.

Além disso, é importante lembrar que a manutenção de alguns poucos indivíduos que apresentem alelos diferentes dos da maioria de uma população é essencial para a preservação da mesma durante um longo período temporal, fazendo frente às mudanças ambientais e, conseqüentemente, a novos fatores de seleção natural.

Tolerância à lactose

Leiteira, tela de 1658-1660 do pintor holandês Jan Vermeer van Delft (1632-1675).

Um exemplo interessante da evolução humana recente é a tolerância de adultos à lactose. Originalmente, os seres humanos, como muitos outros mamíferos, eram alimentados com leite apenas no início da vida e, na fase adulta, eram intolerantes à lactose. Contudo, em populações que tinham produtos lácteos à disposição e o hábito de consumir leite diariamente, foram selecionados alelos que expressavam durante toda a vida dos indivíduos enzimas que digerem lactose. O mesmo não ocorreu em grupos que não tinham acesso a esses alimentos.

O ganho calórico e nutricional proporcionado por esses produtos gerou vantagens para as populações que os consumiam diariamente. Análises genéticas dessa enzima indicaram que os alelos relacionados com a tolerância à lactose na idade adulta evoluíram recentemente em descendentes das primeiras populações que consumiam diariamente leite e derivados.

O seqüenciamento do genoma humano e a criação de um catálogo detalhado da diversidade de nossa espécie, conhecido como HapMap, têm gerado ferramentas poderosas para que possamos compreender os mecanismos associados com a seleção natural sobre alelos de nossa espécie. Essas e outras ferramentas biotecnológicas têm permitido detectar a ocorrência de seleção positiva em humanos em genes relacionados com a fala, com funções cerebrais, com a cor da pele e a resistência a doenças.

Embora seja difícil prever o ambiente no qual nossa espécie viverá no futuro, doenças causadas por patógenos permanecerão um fator importante para a nossa espécie em um futuro próximo, principalmente em países pobres.

Algumas populações européias e do norte da Ásia apresentam um alelo raro que confere resistência contra o vírus HIV, causador da Aids. Os efeitos desse alelo ainda não se fazem notar, pois ele não está presente em populações que sofrem taxas elevadas de infecção por esse vírus (principalmente na África). Se a epidemia de HIV/Aids se tornar mais severa nessas populações ou se surgirem novas mutações nas populações sob epidemia, uma resistência à doença pode se desenvolver no futuro.

É claro que esse processo não ocorrerá de forma rápida e milhões de indivíduos morrerão antes que possamos combater de forma natural essa doença. Além do mais, o vírus pode também desenvolver mecanismos para evitar que isso ocorra.

O caso da malária

A cada ano, cerca de 500 milhões de pessoas são infectadas por protozoários do gênero Plasmodium, causadores da malária. Em algumas populações historicamente afetadas pela doença, a seleção de pelo menos seis genes levou à evolução de resistência a essa enfermidade.

Outras doenças têm seguido um caminho similar. Um bom exemplo é o da malária, contra a qual a humanidade tem lutado há milênios – a cada ano, cerca de 500 milhões de pessoas são infectadas por protozoários do gênero Plasmodium, causadores da doença. Esse processo levou à evolução, em algumas populações historicamente afetadas pela malária, de resistência à doença, por meio da seleção de pelo menos seis genes.

Estaríamos, então, interferindo nesse processo natural ao criarmos vacinas e tratamentos contra essas doenças? De certa forma, sim, pois modificamos o regime de seleção ao qual nossa espécie está exposta. Do ponto de vista da seleção natural, os efeitos de uma doença sobre nossa aptidão deixam de atuar quando tratamos dessa patologia.

Contudo, nem sempre o tratamento elimina a doença e nem todas as pessoas são tratadas. Voltemos ao exemplo da malária: essa doença foi erradicada do sul dos Estados Unidos e em Cingapura, mas em lugares como o Brasil, os programas de erradicação não têm alcançado sucesso.

A seleção natural mantém os alelos que causam doenças genéticas em baixa freqüência nas populações. Contudo, novos alelos relacionados com essas patologias são criados em populações humanas por meio de novas mutações com a mesma velocidade em que são eliminados de outras pela seleção natural. Essa freqüência é determinada parcialmente pelas vantagens ou desvantagens que esses alelos conferem a seus portadores. Será que, ao tratarmos de pessoas com doenças genéticas, estaríamos, portanto, auxiliando a conservar esses alelos nas populações humanas?

É importante se estabelecer que qualquer mudança na freqüência gênica devido a esses tratamentos somente ocorrerá após várias gerações, um período suficiente para que novos estudos genéticos sejam conduzidos e novas alternativas sejam desenvolvidas. Além disso, esses tratamentos não se distribuem de forma igualitária a toda a população humana, excluindo muitos indivíduos que não têm acesso a eles.

Com sua capacidade de moldar dia após dia as espécies vivas às exigências ambientais, a evolução é a força motriz da vida no planeta. Cento e cinqüenta anos após a formulação da teoria da evolução por seleção natural por Charles Darwin e Alfred Wallace, sucessivas evidências tornaram esse processo algo inquestionável nos dias de hoje. O paradoxal é que, apesar disso, um número cada vez maior de pessoas mal informadas levanta dúvidas sobre a sua ocorrência. Nem parece que estamos no século 21… 

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
02/05/2008

SUGESTÕES PARA LEITURA
Bersaglieri et al. Genetic signatures of strong recent positive selection at the lactase gene. American Journal of Human Genetics 74: 1111-20, 2004.
Sabeti et al. The case for selection at CCR5-D32. PLoS Biology 3: e378, 2005.
Stephens et al. Dating the origin of the CCR5-D32 AIDS-resistance allele by the coalescence of haplotypes. American Journal of Human Genetics 62: 1507-15, 1998.
Tishkoff et al. Haplotype diversity and linkage disequilibrium at human G6PD: recent origin of alleles that confer malarial resistance. Science 293: 455-62, 2001.
The International HapMap Consortium. A haplotype map of the human genome. Nature 437: 1299-1320, 2005.